sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Histórias de uma vida não vivida(6)

 The Verve - Lucky man

*Eles sentem o vento batendo em seus finos porém complexos corpos. Talvez não sejam corpos mesmo, mas para eles é como se fosse. Estão no relento, o vento é forte, não traz calor e a imagem de uma grande coxilha não lhes tranquiliza. Estão inquietos com a impossibilidade de subir tudo aquilo que gostariam de subir. Estão decepcionados com o vento, que continua a passar por eles sem trazer um grama de calor para seus, já ditos, finos e complexos corpos. Malditos neurônios... estão desabilitados a pensar.

Algum dia, em algum lugar, achei que poderia viver a vida que eu quisesse. Sabem aquele negócio do carpe diem, do aproveitar o momento, viver a vida? Pois é, um dia achei que poderia seguir aquilo. Trabalhei muito, gastei muito tempo para poder chegar a tão alto cargo, mas não aguentava mais tudo aquilo, eu precisava viver. Então larguei meu emprego na maior empresa de tecnologia do mundo, meus 250 mil dólares anuais e fui aproveitar a minha vida e uma aposentadoria forçada já que quis e consegui, ganhar na loteria. Mais uns milhões na conta.

Não sabia por onde começar. Eram tantos lugares para conhecer. O Uruguai, a Argentina, Chile, só na América do Sul. E depois México, o central Park em Nova York, o Gran Canyon, Nyagra Falls, sem sair da América. Pisa, Compostela, Torre Eiffel, Wembley, Big Ban, Praça Vermelha... isso sem contar Ásia e Oceania. Talvez até a África, afinal, Nelson Mandela foi grande por lá.

Queria viajar, conhecer o mundo. Queria conhecer gente nova. Pessoas diferentes das que conviviam comigo todos os dias. Nunca mais veria a loirinha do café, a Dóris das fotocópias, o Dirceu da portaria... nunca mais veria essa gente simples, mas muito educada. Nunca mais veria o Cordeiro, maldito Renato Cordeiro, nunca vi vice-presidente de finanças tão arrogante. Nem veria o Silveira. Aquele velho careca me tirou algum tempo com seus malditos e inúteis poréns. Desses eu não vou sentir falta.

Mas, voltando ao aproveitar a vida, depois que me dei conta de que era muita coisa a ser vista em uns 40 anos bem vividos que teria pela frente, tentei achar informações dos lugares mais fantásticos. Até comprei livros sobre os lugares a serem visitados antes de morrer, mas não adiantou. Ainda era muita coisa. Muito lugar. Muita gente. Muito deslocamento.

E o tempo foi passando. Meus dias eram basicamente assim: acordar, comer, comer, programar viagens, comer, fazer necessidades e dormir. Não passava disso. E o tempo de programar viagens, por elas nunca saírem, acabou diminuindo, já que não tinha mais saco de ficar empilhando papel, buscando informação e sequer indo a esquina comprar papel higiênico. Mandava o cara do mercado trazer para evitar incômodo.

E com tanto dinheiro, com tantos planos e tanta vontade, achei que seria fácil viver a vida que sempre quis. Aproveitar os momentos que "perdia" no trabalho. Aproveitar mesmo a minha vida, afinal, o trabalho me tirava essa vida toda que eu tinha.

Me enganei. E meu erro foi achar que poderia viver somente de diversão.

Bom, até poderia mas, quando percebi que o cara do mercado me trazia papel toalha e não papel higiênico, para poder lucrar mais, percebi que eu era tão sujo quanto o papel que jogava no lixo. Que minha ambição e falta de caráter eram tão podres quando as do safado do cara do mercado. Eu busquei lucro para poder viver e esqueci que a minha vida nunca dependera de dinheiro. Meu pai nunca me deu um presente. Nunca ganhei um carrinho. Mas nunca reclamei disso. Porque meu pai me ajudava a montar carrinhos de madeira, pano e pedra.

Achei que trabalhando(e ganhando dinheiro), conseguiria dar a meus pais a vida que eles mereciam, mas esqueci que eles não tinham tanto tempo de vida quanto eu. Sequer me despedi quando morreram. Sequer disse a eles, depois de ter começado a trabalhar, que os amava e que, independentemente do que me tornasse e do que ganhasse, seria tudo graças a eles.

Todo meu dinheiro de nada adiantava. Todo o meu tempo livre era inútil. A minha vida era maravilhosa, pois eu tinha oportunidade, capacidade e, principalmente, tempo para fazer da minha vida o que eu quisesse. Me perdi em planos inúteis. Em sonhos possíveis que não tive vontade de buscar. Me perdi em mim. Não sei como consegui ser tão idiota e esquecer que, o que importava não era o tamanho da minha conta no banco mas sim o tamanho da minha vontade que definiria o que eu faria para o resto da minha vida. Queria conhecer gente nova mas sequer lembrava da data do aniversário dos meus amigos. Aliás, por onde andariam eles? Queria conhecer novas pessoas mas sequer perguntava se à Dóris(aquela das fotocópias) como ela estava. Nunca apertei a mão do Dirceu, embora muitas vezes ele tenha estendido o seu braço em minha direção.

Ganhei tudo o que sonhava. Aliás, o que achava que sonhava. Porque eu queria mesmo era ter meus pais e amigos comigo. Mas os primeiros morreram e os outros cansaram de não ter as suas ligações para mim atendidas e os e-mails respondidos. Esqueci de todos. E para que?

Para poder entender que sou um homem medíocre. De muito dinheiro, muito tempo, muito potencial mas nenhuma ação, nenhuma vontade, nenhuma vida. Até a pedra que está em cima da mesa tem mais vida que eu. Sou um medíocre.

Após muito pensar( e escrever), ele pegou aquela mesma pedra e atirou em sua televisão de 80 polegadas, importada do Japão. E foi nesse ato marginal, estúpido e grotesco que, depois de 15 anos de auto-flagelo, ele sentiu-se vivo e começou então a aproveitar tudo o que tinha. Primeiro, comprou todas as flores de todas as floriculturas da cidade e foi colocar pessoalmente no cemitério que havia construído para seus pais. Depois, como quem diz "desculpem-me amigos", comprou uma livraria e, à mão, escreveu uma carta a todos os seus amigos, indo entregar pessoalmente nas mãos dos mesmos, como prova, principalmente para si mesmo, de que havia mudado. Não poderia recuperar o tempo perdido, mas não importava mais quem ele tinha sido, mas sim, quem ele poderia ser. Passou a lutar e não pensava duas vezes em mandar plantar flores e pagar o triplo para aqueles que faziam aquilo por gosto, e não pelo dinheiro em si. Era como se fosse uma recompensa que ele dava a todos os que faziam o que, hoje, ele percebe ter sido sempre o seu grande sonho: ajudar, não quem precisa, mas quem merece. Morreu anos depois, pobre e desconhecido, mas antes de fechar os olhos pela última vez, sentiu-se feliz por ter tido tempo suficiente para sentir-se vivo, e feliz por poder encontrar seus pais no paraíso... se é que esse paraíso existe mesmo...

2 comentários:

Taw disse...

A possibilidade de fazer muitas coisas dificulta mesmo as ações e a vida prática. Quando se Tem poder de fazer [o que quer(?)] é muito mais fácil de cometer grandes erros.

Anônimo disse...

É um mal da era fast. Achar que trabalho é tudo em uma sociedade de aparências. Que bom que o eu-liríco do seu texto se achou em meio a este labirinto...

Vc curte "The Verve"? Vi a notinha no final do post. Lucky Man é muuuito boa ;)

beijos