quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Histórias de uma vida não vivida (62)


*Bem que tentei lembrar, trazer à tona e mostrar que nada do que pensava que havia sido fora de fato. Nenhuma imagem bate, nenhuma lembrança se encaixa. O monstro existe, sim, mas como não consigo lembrar de onde surgiu, por que, como, quando, especificamente... não sei de onde saiu e para onde foi. Sei que se esconde. Por algum motivo desconhecido, novamente. Repetidamente acabo brigando com isso. Com ele. Com aquilo. Com alguma coisa. Troco socos sem piedade. Levo socos violentos. Saio machucado e, talvez, apenas eu sofra algum dano. Isso acaba? Algum dia acaba? Não. O que foi continuará sendo para sempre. Mesmo que novas histórias surjam. Mesmo que uma vida nova seja vivida. O que foi sempre fará parte. Por isso o monstro se esconde. E algumas vezes para bater. Por que algumas vezes? Por que ALGUMAS vezes? Sempre quando estou desprevenido. Acho que alguma coisa consegui tirar dele da última vez. Uma lembrança escondida, remota. Pensamentos vagos com algum significado. Oculto. Parcial. O que foi sempre será. De alguma forma sempre será.

Lembro que eram dezesseis primaveras passadas. Ou estava com doze? Talvez catorze anos. Certo, estava entre os 10 e os 14 anos ou, na pior das hipóteses, se passaram pelo menos oito anos. Seria bom saber, talvez houvesse algo no contexto da época que pudesse explicar o fato.

Caminhando pelas esquinas, cruzando ruas em frente a carros e olhando para rostos de pessoas. Tudo isso é da época. Daquela época. Os passos eram curtos, medrosos e os olhares, bem, quando não eram para o chão ou para meus tênis quarenta e dois- ou seriam quarenta? - eram para pessoas que me olhavam de um jeito estranho.

Ao menos para mim, naquela época, era estranho. Meu cabelo era estranho. Minhas ações eram estranhas. Minha rebeldia, contida para uns e visível para outros, era estranha. Entre bater no portão, socar uma almofada e desabafar com uma paulista sem noção, tudo isso no mesmo dia, e ir até o centro comprar uma revista que falasse de Dragon Ball, naquele dia eu não tinha mais do que dois reais.

Quem compraria uma revista do Dragon Ball com dois reais? Nem há 20 anos atrás, suponho.

Caminhando, falando sozinho, olhando e não querendo ser visto. Era um maníaco em potencial. Um doente mental que em alguns anos sairia com um canivete nas mãos e cortaria alguma goela para mostrar que o mundo é injusto, que a vida era uma droga e que nada poderia pará-lo.

Nada disso se confirmou. Para o sujeito da goela que seria decepada, ainda bem que tudo não passou de louca suposição.

Frases tão curtas como os passos. Tirou os dois reais do bolso, nota nova, novíssima. Talvez recém tivesse sido colocada em circulação. Assim como todas as notas de dois reais que, em algum tempo, foram novidade surpreendente - como essas porcarias de notas com tamanhos diferentes o são hoje. Minha carteira não consegue receber uma nota de cem reais por conta do seu tamanho. É bem verdade, também, que não tenho ganhos para colocar uma nota dessas na carteira.

Falando isso, onde está minha carteira?

Ah, sim, a nota de dois reais. Olhei e guardei-a. Sem revista mas com vontade de gastar - aquele maldito instinto capitalista! - continuei caminhando. 

Farmácias aqui e ali. Duzentas delas em uns duzentos metros de rua. Quanto dinheiro não lucram esses revendedores de drogas legalizadas, ein? Resolvi entrar. Em uma delas me pesei.

Saudades do tempo em que pesava o mesmo que o saco de cimento.

Saí. Os dois reais estavam gritando para saírem do bolso de um maníaco e repousarem na caixa registradora de traficantes de drogas. Legalizadas sim, mas ainda drogas. Entrei em outra. A do lado. Placa azul. Quase no final da rua em aclive. Olhei para cá, para lá. Pensei em como pedir. No que pedir. Lembrei. Ah, a lembrança da infância, essa fase que nos atordoa pelo resto da vida através do inconsciente.

Uma atendente veio até mim. Feia. Devia ter uns quarenta anos - e eu com quarenta quilos, 'no way!' - e era tão bela quanto aquela colega que havia jogado um rato... UM RATO na cabeça de alguém, dias atrás. Mundo injusto... ou não.

- Posso te ajudar? - ela perguntou, tentando sorrir. Entretanto, sua forma de sorrir não era boa.

Pensei em dizer que daqui a alguns anos teria um canivete e viria cortar sua goela mas... ela talvez risse. Com um sorriso menos forçado que essa tentativa fracassada de demonstrar simpatia. Poderia ter desabafado, contado sobre minha vida, meus planos arruinados por esse mundo maldito...

- Tem aqueles chicletes de farmácia?

Oh, céus, como eu era ruim nisso.

- Valda?

- O verde?

- É.

- Então é esse mesmo.

- Deixa eu ver...

E gritou para um colono que estava lendo o jornal de quarta.

- Ei, Cidão, ainda tem chiclete valda?

Óbvio que, para minha completa desgraça, ele gritou:

- Não, comi o último.

Mudança de planos, a goela cortada não seria a dela, mas a dele.

- Ouviu?

Ela poderia ter me dito não. Acho que a goela vai ser a dela mesmo.

- Sim, são bons.

- É.

- Uma pena, queria um.

Eis que o Cidão gritou:

- Posso te dar o meu, quer? - e riu debochadamente.

Sim, é a goela dele que vai. Ou iria. Não sei, estou confuso com tantas mudanças temporais. Preciso rever meus conceitos. Minhas lembranças. Minhas histórias. Esses fragmentos de vida que voltam ocasionalmente para atordoar minha já conturbada situação. Bem, apenas minha mente é fonte de problemas, distúrbios e talvez meu quarto seja o único resquício de conturbação. Não sei bem, estou em dúvida.

Não consigo lembrar o que fiz com os dois reais já que não comprei chiclete algum.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Pedaços de um pensamento (89)

Acordei procurando uma sensação. Uma prova. Uma completa, mesmo que singela, demonstração que objetivamente mostrasse que ainda não havia nada perdido. Cansado, levantei e fui ao banheiro. Lavei o rosto e nada. Escovei os dentes e nada. Usei o vaso sanitário e nada.

Voltei para o quarto, troquei de roupa, coloquei meias e tênis, o crucifixo no pescoço, o relógio no pulso e, nada. Tudo isso faço quando sonho. Tudo isso faço em pensamento. Ou, ao menos, posso fazer. São coisas vagas. Rotinas vagas. O sonho, aquele que surge inconsciente, por algum motivo que ninguém sabe explicar - se é que o há -, pode muito bem retratar situações rotineiras.

O que nos prova que nossa vida não é um grande sonho? Que nossa existência minúscula não é apenas um momento de hibernação e que, a qualquer momento, vamos acordar em um corpo que não parecerá ser o nosso? O que, parecendo, estará vivendo uma vida diferente dessa?

Como esse pensamento, que foi transformado em palavras escritas, pode ser confundido com algo do espiritismo - não sei se vai, mas pode - e, claro, como quero manter minha vida longe disso, tive que procurar melhor. Olhei na janela e a veneziana parecia estar chorando. Como as paredes não o estavam também, a tal da 'umidade' não era desculpa. Fisicamente, havia água escorrendo ali porque no quarto havia uma fonte de calor que, encostando na veneziana - fria por conta da temperatura externa -, condensava a água que ali havia.

A fonte de calor era o meu corpo. E como ninguém sonha que a veneziana está suando por conta do 'calor' do quarto, pude concluir então que estou vivo e que isso não é um sonho.

Vida!

domingo, 10 de agosto de 2014

Confusão

Como uma tsunami que, sem causar vítimas, destroça e vira do avesso tudo pelo qual passa, tem sido o tempo e suas surpresas, quase todas invisíveis e interiores, dentro de mim. Não sei o que dizer, agora, quanto a isso. Está tudo revirado. Destroçado. Bagunçado. E com um monte de lama entupindo motores e objetos ocos, completa ou parcialmente.

É preciso entender alguma coisa antes de tentar jogar algumas palavras para fora.

Estou confuso e angustiado, apenas isso.

Reflexões de um maluco (24)



Tem sido tão raras as vezes que meus olhos conseguem ver que não sei mais quais reações, do tipo bola de neve jogada do alto de uma montanha coberta por... neve, ocorrem após isso. Isto. Aquilo. Enfim.

Não acho que seja triste. Também não posso dizer que é algo que traz felicidade, bom. A reação, a consequência da visão ainda é, e há muito tempo diga-se de passagem, bem entendida, compreendida, assimilada, definida. Definições faltam por não haver muitas certezas em meio a tantas dúvidas. A tragicômica mania de imaginar, com alguma relevância e nenhuma imprecisão ou impaciência, e, ao ver, perder qualquer definição, acaba sendo apenas mais uma lenha para um inverno caótico que tem sido os últimos milhões de segundos.

Também é preciso deixar claro que não existe. Como também é bom dizer que existe. Porque a dúvida do que há, ou não, torna tudo mais difícil. Do ver ao ouvir, do tocar ao sentir. Tudo é indefinição, tudo são dúvidas, tudo são lembranças. Felizes e tristes, não necessariamente nessa ordem.

Dia desses imaginei falar para algumas pessoas, de alguma forma, quão grandes haviam sido alguns dos erros e o que me tinham tirado, o que haviam destruído na vida daquele que os falava. Não sei quem eram as pessoas, não sei porque haveria de chegar ao ponto de lembrar algumas das minhas grandes falhas, e principalmente da maior. Não sei. Tudo são dúvidas, tudo é ausência de definição, tudo – ou quase tudo – é mera passagem de tempo.

Talvez, veja bem, talvez, essas dúvidas, sejam elas inúmeras ou apenas uma solitária dúvida que se apresenta de diversas formas por diversos motivos, só venham à tona com alguma frequência porque não há possibilidade de encontrar um ponto final para alguma parte.

É bem verdade que grandes erros geram pontos finais definitivos mas, ainda assim, e apesar de poder definir muito bem o que, por que e como ocorreram tais erros, não consigo encontrar a tal capacidade de lidar com isso como se fosse mero aprendizado.

Porque não acho que o seja. E talvez nunca ache.

Se a vida é outra, hoje, e se boa parte desses erros acarretou em coisas diferentes, tudo bem. Deus sabe o que faz, sabe como como conduzir, sabe que portas abrir e quais fechar. Entretanto, apesar de não pensar nos condicionais presentes – pois, caso o fizesse, necessitaria de um manicômio exclusivo – seria bom conseguir olhar para trás e ver um ponto definitivo.

Talvez, e mais uma vez talvez, com algo que não fosse o nada constante com um raríssimo e quase instantâneo tudo, houvesse muito mais tranquilidade para lidar com as lembranças que vem e, claro, com o presente que há. Dentre todas as diferenças entre o tudo, o nada, o se e o que de fato há, a maior está na própria existência em si. E a única coisa real é o que há.

Mas, se o que não se vê também é real, como acredito que seja, o conflito é bem mais complicado, as dúvidas são muito maiores.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Reflexões de um maluco (23)

A vida, por si só, é uma grande ironia.

Você sabe quando começou, mais ou menos. Sabe de onde veio. Sabe se foi ou não planejada a sua vinda - ou, ao menos, esperada. E sabe que tudo na vida tem um começo. O problema, então, passa a ser o final, e aí é que, antes dele, faz-se presente a ironia. Você não sabe quando é. Como será. Se verá ou não e, se tiver olhos ou tato para isso, como será. Talvez não seja tão claro mas você sabe do princípio com certeza, mesmo que não lembre de nada. E não sabe nada sobre quando tudo isso terminará. O meio do caminho, a vida em si - que é tudo entre a concepção e o último batimento cardíaco - é uma ironia por consequência de seu início e fim um tanto imaginativos.

E quase nada racionais.

Durante a existência há inúmeras possibilidades e elas só aumentam quando escolhas são feitas. São muitas palavras para pouco dizer, muita história para pouco personagem e, entretanto, algo continua aqui. Sem muita semelhança com o que chamamos de vida mas, ainda assim, cheio de ironias que para alguns são doces e para outros são amargas. Insisto em dizer sem dizer, em escrever sem significar porque não existem muitas coisas com ironias tão claras quanto textos que dizem muito sem dizer nada.

É como, bom, deixa pra lá. Os exemplos não deixam clara a ironia, apenas a confusão ou falta de qualquer coisa - ou melhor, de tudo.

Por fim, até que enfim, irônico, além da vida vivida - e daquela imaginada - há um balaio de situações que não fazem sentido. Como, por exemplo, tentar entender o que existe ou acontece e, e alguma forma, ver uma explicação vencendo uma loteria mas no cartão de apostas de outra pessoa. Ninguém mandou riscar os números e não apostar. Tampouco houve alguém que quis ganhar sem jogar. Das impossibilidades surgem certezas e essas são jogadas diante dos olhos como se significassem tudo, porque acabam significando mesmo tudo, ao passo que pareciam ser apenas um mero detalhe, casual, inútil e desconfortável.

Como sentar no concreto e ver alguém marcando o gol que você deveria marcar, comemorando uma vitória que deveria ser sua e, principalmente, dando a entender que a culpa de que tudo isso, que deveria ser seu, ocorra diante dos seus olhos mas na vida de outra pessoa.

Irônico como ver uma dondoca passeando com seu poodle cuidado com shampoo importado mas amarrado em um fio de luz.

Apaguem as luzes, o piloto está com enjoo.