domingo, 20 de março de 2016

Histórias de uma vida não vivida (71)

*Quão memorável pode ser um cheiro? Bom ou ruim, a atenção chamada pelo olfato é intensa porém passageira. A leviandade da boa sensação, sobretudo se provocada por um bom cheiro, faz com que seja relativamente fácil esquecer desse, uma vez que muitos novos cheiros são percebidos pelo olfato. Contudo, uma imagem, ainda que dure poucos instantes, pode ser eternizada na memória diante de um contexto, mesmo que muitas outras imagens surjam imediatamente após, e durem significativamente mais. Não importa, em si, a origem que atiça nossos sentidos. Podemos ter como inesquecível boas ou más lembranças, imagens, sensações, bons ou maus sentimentos, odores, sons. Desconfio que Alguém coordene o que realmente acaba ficando gravado em nossa memória. Só assim é possível conciliar instantes efêmeros com a eternidade de uma lembrança. Ainda que nem sempre saibamos a origem, ou mesmo o porquê, da mesma.

Aquele rapaz e seus tiques nervosos estavam dificultando minhas orações. É sério, várias vezes percebi estar prestando atenção nele e não no Fim da minha oração. Várias vezes quis pará-la, ir até ele e pedir para que saísse do meu campo de visão. Estaria sendo extremamente egoísta e, portanto, minha oração naquele Lugar seria um tanto quanto hipócrita.

Continuei tentando concentrar meus pensamentos em Deus até que o vi levantando e caminhando, lentamente e com a cabeça baixa, até o padre que estava atendendo confissões. Era evidente que um tipo daqueles, estranho daquele jeito, deveria ter um caminhão de pecados.

Não, espera, isso também não está certo. Se estava lá não era só porque queria rezar. Queria confessar minhas culpas para um sacerdote e desfrutar da Misericórdia. Ele também. Por que então passa pela minha cabeça que ele é pior do que eu? Por causa dos tiques nervosos? Que loucura era minha.

Consegui então concentrar meus pensamentos no Cristo ressuscitado e, ufa, perceber quantos e quais erros havia cometido. Foram bons minutos de reflexão até que decidi sentar e esperar o frei ficar livre para me confessar com ele.

No entanto, vi o rapaz voltar ao banco. Caminhando lentamente e de cabeça baixa. O que me surpreendeu naquele momento foi perceber que ele estava chorando. Não como um bebê birrento que não ganha o que tanto pede aos berros. Ele chorava com modéstia, simplicidade, tranquilidade. Veio buscar perdão e certamente percebeu que a Misericórdia é sempre derramada sobre aqueles que a buscam. Estranho ver um rapaz, daquele tamanho, estranho daquele jeito, chorar. Não estava julgando-o, apenas constantando.

Permaneci sentada por alguns instantes, inevitavelmente olhando repetidas vezes para ele. Estava alguns bancos à minha frente e não foram poucas as vezes em que o vi levar as mãos ao rosto, limpando as lágrimas ou, quem sabe, algum líquido meio nojento que poderia estar escorrendo do seu nariz. Era estranho, contudo, que não conseguia parar de olhar para ele, de perceber como aquilo era obra de um Deus magnífico, de querer ter aquela mesma experiência, intensa e visivelmente sincera. 

Eu não podia ver seu rosto então decidi ir alguns bancos para frente, até que, sem perceber, estava de pé ao lado do banco onde ele estava sentado. Pareceu não perceber que eu estava ali pois contemplava o Sacrário com visível admiração, e um sorriso discreto porém perceptivelmente sincero. Fiquei por alguns segundos olhando para ele até que, mais uma vez sem entender o motivo, dei-me por conta de que estava sentada ao seu lado. Ali, então, ele percebeu que não estava sozinho.

Olhou-me, surpreso, mas nada disse. Por alguns instantes, olhei em seus olhos e percebi que ainda havia lágrimas brotando. Esperei ele perguntar o que eu estava fazendo ali, o que queria com ele, se eu estava querendo saber por qual razão ele estava chorando ou algo paranoico deste tipo que, provavelmente, eu perguntaria. Todavia, nada disse. Seu rosto parecia um pouco inchado, evidentemente por causa do choro, mas sua expressão não era de tristeza, tampouco alívio. Parecia, isso sim, feliz. Surpreso comigo, feliz pelo que acabara de experimentar.

Decidi que aquela estranheza deveria acabar ou, pelo menos, deveria tornar-se explícita através de palavras.

- Percebi que você estava limpando as lágrimas com as mãos... então lhe trouxe esse lenço.

Entreguei o lenço a ele, que olhou-o em minhas mãos e, lentamente, segurou-o. Hesitante, finalmente falou.

- Obrigado... mas não quero sujar seu lenço.

"Ora!" - pensei.

- Tudo bem, pode ficar com ele. - disse, sem perceber que estava oferecendo o lenço que ganhei de presente da minha avó, comprado em Roma.

- Não, é que...

- Está certo - eu o interrompi. - Se você não quer ficar com ele, pelo motivo que for, tudo bem. Mas use-o agora e, sei lá, leve para casa, lave-o e me devolva em outra oportunidade.

Ele parecia ainda mais surpreso. Eu, no entanto, estava perplexa com o que acabara de falar - ou com a forma com que o fiz. Ele olhou para o lenço, secou as lágrimas que estavam prestes a cair e, olhando para baixo, voltou a falar comigo.

- Obrigado.

Percebi em sua feição algo que me impedia de direcionar o olhar para outro lugar. Estava admirando-o, verdadeiramente e sem qualquer segunda intenção. Ou estava encantada por conhecer um homem, católico como eu, que era capaz de chorar apenas por reencontrar a tranquilidade sob a Graça do Criador. Ou ele estava chorando pela perda de alguém? Como poderia saber sem perguntar?

- Você... - comecei, hesitante, e parei quando percebi que não deveria fazer perguntas a ele, agora.

- Hum? - resmungou, não sem olhar em meus olhos com curiosidade e afeto.

- Ãhn... nada. Eu vou me confessar agora então... você me devolve quando puder. Ou melhor, se quiser.

Já não importava de onde o lenço vinha. Parecia ter sido tão providente tê-lo levado junto que... era tão sensato que ele ficasse com aquele rapaz... Com ele.

- Está bem. Obrigado de novo. - disse, abrindo um leve, e encantador, sorriso.

Levantei e saí. Após confessar-me, não o encontrei mais no banco. Talvez não o veja mais porque, talvez, ele não more aqui e estava apenas de passagem aquele dia. Talvez ele não seja um católico praticante, ou mesmo católico. Talvez.

Ou talvez ele seja tudo o que pareceu ser. Incluindo o adjetivo encantador.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Reflexões de um maluco (25)

Estávamos longe um do outro. Perto demais, contudo, para ter como impossível uma resposta afirmativa para aquela pergunta que, bem ou mal, toda relação - em algum momento - exige:

"E agora, o que seremos?"

Mesmo as amizades possuem momentos assim. Vejamos. Você conhece um sujeito, engraçado, começa a jogar futebol com ele, conversar sobre carros, sobre política, talvez até sobre religião mas, principalmente, sobre mulheres - quase todos os aspectos - e futebol (ou esportes em geral, se o sujeito for meio fresco ou torcedor do maior rival do seu time).

Chega, sempre, um momento em que a pergunta 'o que seremos, então?' fica implícita. Somente os idiotas não se dão conta disso. Você, se tiver o mínimo de bom senso, começa a refletir. Se o cara tem mentalidade comunista, se não gosta de futebol ou se tenta conquistar a mulher por quem você é apaixonado (vocês estavam esperando que eu dissesse algo do tipo 'se ele não gosta de mulher', né? Homofóbicos são vocês, caros indivíduos) é evidente que não se esforçará para responder à pergunta e, consequentemente, a estará respondendo com um singelo e sonoro (e, muitas vezes, inaudível) "nada". Não seremos nada porque somos incompatíveis.

Ou porque acho você um imbecil. Ou porque você, bem, você é um esquerdotonto fã do Sacomorto ou do Duviviê.

A questão, contudo, não são as amizades que dependem de gostos em comum, mas também de um reconhecimento de que 'vale à pena ser amigo deste homem'.

Eu, hoje, queria falar sobre as amizades entre homem e mulher. Ou melhor, entre mulher e homem (porque, convenhamos, se as mulheres falam mais numa relação é direito delas serem nomeadas primeiramente). Anos atrás saí de onde estava para passar alguns anos sabáticos em outro lugar. Os detalhes da minha vida não importam. Conheci uma menina, ou melhor, uma jovem - que hoje é uma mulher. Nos aproximamos de forma que começamos a nos encontrar com frequência regular. Frequência esta que era diária quando se tratava de conversa.

Pouco importa o meio, estávamos todos os dias sabendo o que acontecia um com o outro. Conhecíamos muito sobre a vida do outro e, evidentemente, chegou a hora em que foi inevitável - e, curiosamente, imperceptível - ter de responder ao 'e agora, o que seremos?'. Ambos solteiros, gostando um da companhia do outro, alimentando uma admiração recíproca e sincera... e nada.

Quando percebemos que era impossível sermos mais amigos do que já éramos e, ao mesmo tempo, que não havia certeza de que o certo a fazer era trocar o beijo na bochecha por beijo na boca, hesitamos. E aí foi o fim.

Começamos a ficar sem jeito um com o outro. A não conversar mais todos os dias. A não contar mais segredos, detalhes de nossas vidas. Tornamo-nos distantes porque fugimos da resposta que parecia ser a menos real - e que era a mais sensata: Hoje, não.

Respondendo desta forma, hoje, ainda estaríamos convivendo frequentemente, mantendo algo chamado amizade e podendo contar um com o outro para nossas dores, e para compartilhar nossas alegrias. Ignorando a necessária, e exigente, pergunta, acabamos por ignorar que não há como ultrapassar certo ponto em uma relação sem responder, ainda que não definitivamente, à pergunta. O 'hoje, não' nos possibilitaria manter a amizade até que chegasse um momento em que teríamos de nos fazer novamente esta pergunta ou um em que não precisaríamos mais fazê-lo. Poderíamos conhecer alguém que despertasse em nós paixão - coisa que nenhum dos dois foi capaz de despertar no outro, embora não esteja certo de que algum dia tentamos fazê-lo. Veríamos como reagiríamos a isto e... a amizade, ainda que diferente, estaria salva da hesitação covarde.

Não se pode fugir de perguntas definitivas. E o 'e agora, o que seremos?' é uma destas.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Histórias de uma vida não vivida (70)

*Acredito que todos procuramos, em algum momento de nossas vidas, alguém que se encaixe em um padrão que seja estritamente nosso, alguém que satisfaça nossos anseios e que, imaginamos, venha a nos completar. Como poderá alguém preencher-nos se nem mesmo temos certeza do que está faltando em nós? Temos dificuldades, para alguns gigantes, em reconhecer nossas falhas, nossos erros e limitações, então como temos a coragem, irônica, de querer que alguém, que também possui falhas, erros e defeitos, possa vir a nos completar? Esperamos, muitas vezes, algo impossível, alguém impossível, uma pessoa idealizada do nosso jeito, perfeita em nossa imaginação. Esperamos que alguém venha e faça com que o que há de mal, do mal, em nós desapareça apenas com a própria presença. Seria bom e facilitaria muito mas... não seria justo. Por fim, deixando para trás essa ideia vaga e irreal, posso afirmar que passei a buscar alguém que me ajude a ser capaz de enterrar meu passado e de eternizar, na minha limitada humanidade, através do amor, o momento presente. Da mesma forma, espero poder ajudá-la a fazer o mesmo para que, então, a minha história, e a história dela, deixem o singular do eu para serem escritas no plural do nosso. Eu, ela, e Aquele que nos unirá. Os defeitos, falhas, vícios e pecados passarão a ser enfrentados de uma nova maneira. Da nossa maneira. Naquela que será a nossa história.

O telefone tocou e ela, sabendo quem era, se jogou por cima do sofá para alcançar o telefone que estava na mesinha de centro, batendo no assento e quase caindo com a cara no chão, pensando que se não atendesse logo ele iria... não, ele não iria embora, pensou. Ao menos não sem antes telefonar umas cento e quarenta e sete vezes para saber se ela estava bem.

- Calma, Lívia, calma! - falou alto - Você não pode demonstrar esse nervosismo na frente dele. - Pensou em como era bom morar sozinha já que tinha o costume de falar sozinha e...

O TELEFONE.

- Oi! - atendeu colocando quase que imediatamente um sorriso nos lábios.

- Estou aqui embaixo, você quer me mostrar o apartamento agora ou depois...

Ela ficou imóvel. Em silêncio. Pensou ter sido colocada em um freezer.

- ... ei, é brincadeira, pode descer que estou esperando.

Sentiu-se aliviada e quente novamente.

- Está bem - disse ela com uma voz fraca.

- Você está pronta? Está bem?

- Sim, estou. Já desço. Tem certeza de que está na frente do prédio certo dessa vez?

Ele riu.

- Sim, estou. E aquele dia... - tentou explicar algo, mesmo sem saber ao certo o motivo que daria para o erro de dias atrás porém nem precisou terminar a história por ser interrompido.

- Blá blá blá. - não conseguiu evitar, sabia que ele responderia da mesma forma, como tantas vezes já havia feito.

Os dois riram.

- Até daqui a pouco - e desligou o telefone. Ficou olhando para a foto dele que ainda aparecia na tela, concentrando-se no seu sorriso até que a tela do seu smartphone apagou.

Recompôs-se da quase queda, pegou a bolsa e largou o celular dentro dela como se como se agora ele pudesse desaparecer sem ser notado. Saiu do apartamento e apertou o botão do elevador. Os segundos entre o aperto do mesmo e a sua chegada ao andar pareceram horas para ela. Pensou mais uma vez que ele poderia não gostar de esperar tanto tempo e acabaria por ir embora.

"Não, ele não iria embora mesmo que essa demora fosse de horas", como sua errada noção de tempo fazia parecer.

As portas do elevador se abriram e ela entrou. Apertou o botão do térreo e teve, mais uma vez, a sensação de que aquele meio de transporte vertical parecia 'estar sendo deslocado por um jumento'. "Ele faria esse comentário e depois riria mesmo que eu não achasse nenhuma graça. Eu acharia graça mas não riria apenas para ver ele falar algo ainda mais engraçado, e então riria discretamente para que ele não desistisse de me fazer rir."

Percebeu durante a descida que, como de costume, estava batendo o pé por conta da ansiedade. "Ah, aquela ansiedade chata e sempre presente quando vou encontrá-lo". "Será que estou bem vestida? Ele disse que gosta que eu me vista como quiser mas... será que ele vai gostar... onde está o espelho desse elevador?"

- Calma, Lívia, calma! - falou alto, mais uma vez.

E outra vez. E várias outras vezes até que ouviu uma voz:

- Oi! Você está nervosa?

O elevador havia chegado no térreo, as portas se abriram e ela, olhando para os pés e repetindo 'calma' não percebeu que agora ele estava ali, parado.

Ela então virou-se, não sem antes quase sofrer um infarto, querer esconder a cabeça em um buraco ("como dizem que os avestruzes fazem, mas é mentira" disse ele, para ela, algum dia) e repetir mentalmente o 'calma, Lívia' pelo menos umas dezessete vezes. Ele estava parado na frente do elevador, segurando um guarda-chuva na mão e no rosto mostrava o típico sorriso de quem encontrou algo que por muito tempo havia procurado.

Ela sabia como era esse sorriso porque sentia estar sorrindo da mesma forma, ainda que um pouco embaraçada.

- Oi! Como  você entrou? -  'poderia ser mais gentil, Lívia, poderia?' pensou sem notar que o seu tom revelava o nervosismo que tentava, em vão, esconder.

- Uma senhora estava chegando do mercado cheia de sacolas, desci do carro e vim ajudá-la a carregar. Sorte que ela mora no segundo andar então foi rápido, embora tenha demorado bastante porque ela deixou uma sacola cair enquanto saíamos do elevador.

"Por isso esse elevador demorou tanto" foi o pensamento dela, seguido por um "ele deve ter percebido meu nervosismo mas... como posso me acalmar?". "Ei, espera" - pensou ela antes de falar - "ele ajudou uma senhora... que fofo".

- Ah, que bom.

- Você está com calor?

- Por quê?

- Suas bochechas estão coradas. Ou você está com calor ou...

AI.

- ... é só a maquiagem. Desnecessária, por sinal.

Ele piscou o olho e depois sorriu. Ela sentiu o coração quase parar.

- Eu devo agradecer por isso? - "LÍVIA SUA MAL EDUCADA".

Eles riram.

- Então... vamos ou... você está muito cansada? Se estiver, tudo bem, marcamos outro dia.

"NÃO, NEM PENSAR".

- Não, estou um pouco cansada mas já marcamos há dias então...

- Bom, você que sabe.

- Sim, eu que sei - "LÍVIA SUA OGRA", pensou e, mais uma vez sem perceber, fez uma careta.

Ele percebeu a mudança repentina no seu rosto.

- Você está bem mesmo? Até parece que está nervosa.

"FILHO DE UMA BOA E MARAVILHOSA MÃE É VOCÊ" quis dizer ela a ele.

- É impressão sua. Por que o guarda-chuva? - "finalmente uma dentro, Lívia".

- Porque está garoando.

- Você estacionou onde?

- Na frente do portão.

- Não precisava do guarda-chuva, não está chovendo muito e você sabe que eu não sou fresca.

- Eu acho que precisava. Eu quis. Eu decidi. Ou você fica embaixo do guarda-chuva ou volta com ele para o próprio apartamento.

Lívia sentiu o rosto gelar. Agora estava pálida ainda que sem... não, ela entendia bem. O medo de que algo desse errado...

- Desculpe. - disse ela, percebendo que após falar isso ele começara a rir como quem diz 'estou brincando com você, criança'.

- Não foi nada. Vamos?

"Ele não precisava ter feito aquilo. De forma alguma. Conhecia ela há tempo suficiente para saber que ela não se importaria de ser atingida por algumas escassas gotas de chuva. Mesmo assim, quis sair do carro com um guarda-chuva e transformar-se em um cavalheiro. Não, pensar dessa forma seria injustiça. Ele sempre agira assim, e não apenas comigo". Ela achou aquele gesto tão simples e, ao mesmo tempo, tão incrível que apenas resmungou um "sim". E completou com um tímido "obrigada", este em meio a um sorriso que, certamente, fez jus ao gesto, na visão dele.

Chegaram ao portão do prédio e então ele pediu a chave para abri-lo. Após fazê-lo, abriu o guarda chuva sobre ela, ainda sob o abrigo do prédio, de forma que sequer uma gota fina e lenta daquela garoa leve a atingiu. Chegando no carro, ele abriu a porta para ela e só fechou o guarda-chuva após ela entrar e ele fechar a porta. Nos segundos em que ele demorou para ir até a porta do motorista, ela sentiu que não era capaz de assimilar, num todo, o que ele estava fazendo. Aquilo parecia irreal. Todo cuidado e a atenção aos detalhes... nunca havia percebido que ele era assim, e não apenas estava agindo assim para conquistá-la. Percebeu, também, que em seus ombros havia um agasalho. Um agasalho que ela pensava ter perdido.

Ele abriu a porta do motorista e, sem o guarda-chuva mas com alguns pingos de garoa sobre a cabeça e ombros, fechou a porta. Antes que ligasse o carro, ela o interrompeu.

- Acredita que eu nem percebi que você colocou um agasalho sobre os meus ombros? E nem estava chovendo mas... foi muito gentil.

Ele a olhou nos olhos, tencionou dizer alguma coisa porém hesitou. Parecia querer dizer um 'não tem nada demais nisso' mas ali, olhando para ela, foi o mais racional possível.

- Bem, o agasalho é seu e estava no meu carro há alguns dias. E, - agora deixando a racionalidade de lado - bom, eu só estava tentando...

Ela sorriu e disse:

- Foi muito gentil da sua parte. Obrigada.

Ele estendeu seu sorriso aos próprios lábios. Olhava para ela e pensava um pouco em cada um dos muitos pensamentos que surgiam. Ela então o interrompeu:

- Vamos, antes que feche?

Ele então deu conta de que estava 'parado feito bocó na rua vendo a dona bonita' e pareceu assustar-se um pouco. Tencionou dizer algo como 'poderia ficar olhando a noite inteira para você' mas não era a hora certa de jogar um favo de mel gigante para cima daquele rosto angelical. Virou sua cabeça para frente, deu a partida no motor e pôs o carro em um lento e suave movimento.

Dirigiu de forma leve, tranquila e cuidadosa por todo o percurso. Ela, tantas vezes ansiosa, parecia entender que aquela tranquilidade com que ele agia para com ela deveria servir de exemplo para si, embora não tenha feito nada precipitado, ao menos até então. Talvez ele estivesse agindo de forma tão cuidadosa para acalmá-la. Passou a reparar como ele cuidava até no momento de trocar as marchas, para que a transição fosse feita da forma mais suave possível. Desconfiou por um momento se tratar de um carro com câmbio automático mas... não. Ele uma vez havia comentado que o dele tinha câmbio manual ao perceber que o dela era, sim, um carro automático.

Conversaram sobre o que haviam feito durante o dia. Ele falou que havia demorado a chegar porque o trânsito estava horrível. "Imagina se estivesse chovendo bastante". "Pois é". E por aí foi. Ela disse que ele não se atrasou e arrancou algumas risadas dele ao dizer que nunca havia se arrumado tão rápido.

- Até parece. - disse ele, em meio a risadas.

Ela percebeu que ele mantinha toda a atenção ao trânsito mas que, volta e meia, encontrava seu olhar através do retrovisor. Então virava o rosto para o lado e começava um assunto diferente do que estavam falando até então. Chegando ao destino, entraram no estacionamento, subterrâneo, e ela pensou "será que ele vai querer abrir a porta para mim? Não precisa mas... é tão bom ser cuidada desta forma".

Ele estacionou o carro e desligou o motor. Olhou para ela e fez um gesto com a mão, 'espera'. Ela ficou parada e aproveitou o tempo em que ele saía do carro e ia até sua porta para olhar no retrovisor se o cabelo não havia... "e como poderia ter estragado? Não senti uma gota de garoa". Suspirou.

Ele abriu a porta e estendeu a mão para ajudá-la a sair. Tudo desnecessário porém, ao mesmo tempo, parecia tão necessário por ser encantador. Caminharam até o elevador que os levaria até o térreo. Ela não se lembra sobre o que falaram, especificamente. Ele se lembra apenas que ela havia contado sobre como a vizinha do lado ficara feia após pintar os cabelos de roxo.

- Não, eu nunca faria isso. - disse.

'Que bom', ele pensou.

Chegando ao térreo ele deixou-a sair do elevador primeiro e segui-a.

- Por onde começaremos? - disse ele.

Ela, por sua vez, pensou em dizer 'por onde você quiser' contudo percebeu que ele havia entregado a si a iniciativa.

- Pode ser pelo básico. - disse então.

Percebeu que aquela frase foi tão básica quanto vaga.

- Itens básicos de limpeza, alimentação ou higiene? Coisas básicas para almoço, janta, café da manhã ou lanche? O mínimo, e portanto básico, para suportar um dia difícil ou para esquecer de um à noite, ao chegar em casa?

"Nossa, ele pensa em tudo".

- Pode ser pelos de limpeza. - disse, ainda um pouco surpresa com a resposta. De ambos. "Por que pelos de limpeza, Lívia?"

- Está bem - respondeu, sorrindo.

Ele buscou um carrinho e o empurrou até ela, que parou ao seu lado, encostou seu corpo ao lado do dele como que tentando empurrá-lo e, buscando descontrair disse:

- Você dirigiu até agora, deve estar cansado. Deixa esse carro para mim.

- Você garante que não vai atropelar nenhuma idosa?

Eles riram. Em outros tempos ela teria tomado aquela brincadeira como ofensiva. Ali, com ele, entendia que não havia a mínima possibilidade de haver uma crítica, ou deboche, nas suas palavras, algo raro naqueles que ela conhecera até então.

- Está bem então. Mas vou ajudar sendo o seu retrovisor.

Ela riu mesmo sem entender como ele faria aquilo. Olhou para o supermercado e viu que havia pouca gente ali, naquele momento. "É melhor assim, podemos agir normalmente sem que alguém pense que somos bobos".

Entraram na seção dos materiais de limpeza. Conversaram sobre marcas, sobre modos de usar alguns produtos, contaram histórias sobre tombos, roupas manchadas por água sanitária e até sobre como pode-se usar um refrigerante famoso como desentupidor, e obter um resultado excelente. Isso, claro, foi comentado por ele, não sem um "sério, eu e minha irmã já fizemos isso, desentupiu de verdade".

Riam com facilidade. Na verdade, riam de qualquer coisa que lhes parecia engraçada, ainda que com alguma descrição. Em algum momento entre as massas e os queijos ela criou coragem e perguntou algo que a deixara intrigada.

- Por que você disse que seria meu retrovisor?

- Porque nesse carro não tem retrovisor, não?!

- Mas você não está olhando para trás!

- Bom, ninguém bateu atrás de você, então quer dizer que estou fazendo um bom trabalho. Porém se você quiser posso ficar olhando o tempo todo para trás, transformando-a em meu retrovisor.

Ela não pensou duas vezes antes de dizer:

- Está bem, eu quero ser seu retrovisor também.

- Algumas chamam isso de direitos iguais, sabia? Você não faz o tipo feminista.

- Comentário machista.

Riram até que ele ficou de frente para ela, ao lado do carrinho. Ficaram parados por alguns instantes até que o momento foi interrompido por uma voz estranha:

- Com licença, eu preciso pegar um pacote dessa massa integral boliviana. Ou... você poderia me alcançar?

Quanto tempo haviam ficado ali, parados, olhando um para o outro? Um minuto? Provavelmente mais. Aquele senhor não estava em nenhuma parte do corredor. É verdade, também, que, mesmo que estivesse, eles provavelmente não teriam-no notado.

- Claro, você quer a... - segurou dois pacotes na mão, um vermelho e um amarelo, tentando ler o que estava escrito em cada um deles, e disse para o senhor - ... bom, a amarela ou a vermelha?

- Esta - disse o senhor, pegando a vermelha -. Obrigado, mas não demorem muito porque o mercado está quase fechando.

- Ah sim, pode deixar. Tenha uma boa noite - disse ele, em um tom sereno. Virando-se para ela, continuou - Agora você entende por quê eu não me virei para você desde o começo? Ainda estaríamos na entrada do setor de limpeza. Você pode não ter percebido mas poucos passos tenho dado sem olhar para você e, consequentemente, para trás como se fosse mesmo um retrovisor.

Ela sentiu as bochechas esquentarem. Agora estava, novamente corada. Não sentiu-se preocupada com aquilo pois ele demonstrava estar sentindo a mesma... o mesmo... bom, ele também estava com as bochechas coradas.

- Vamos senão o senhor que come massa boliviana vai nos denunciar para o gerente do supermercado que estamos obstruindo a passagem dos outros clientes.

Lívia bem que quis dizer 'eu estava sendo seu retrovisor também, e você também não percebeu' porém naquele momento não pareceu necessário. Ele havia trazido aquele... aquela... sensação para os dois e, por hora, era o suficiente. Ao menos foi o que ela achava.

- Você está muito sorridente hoje, Lívia. É só porque estamos em um lugar com muitas pessoas que você quer mostrar ao mundo os seus dentes recém saídos da cadeira do dentista.

Olhou perplexa para ele. Ele então percebeu o que havia dito.

- Posso refazer minha frase? - perguntou ele, um pouco constrangido.

- Nem pensar - disse ela. - Até seria bom se você repetisse essa frase para que eu pudesse gravá-la para a posteridade. Dentes saídos da cadeira... - gargalhou.

- Você entendeu, para! - tentou consertar sem muito esforço até que começou a rir juntamente com ela.

Seguiram andando pelos setores do supermercado, cada vez colocando menos itens no carrinho. Pareciam estar distantes daquele lugar, embora estivessem concentrados em cada produto que seguravam nas mãos. Mesmo que o carrinho não estivesse cheio, decidiram ser melhor irem embora pois já havia passado do horário de fechamento do supermercado.

- Vamos porque essas pessoas só podem ir para casa quando nós sairmos. Será que somos os últimos? - Lívia parecia ter ficado preocupada com aquilo.

- Acho que sim mas faz apenas três minutos que eles fecharam as portas - disse, olhando para o relógio.

Passaram as compras pelo caixa, ele retirando do carrinho e ela organizando sobre a esteira. Ele pagou, não sem antes ter de convencê-la a deixá-lo pagar com um 'na próxima vez você paga, assim eu posso comprar aquele achocolatado com flocos de caramelo que é muito caro', seguido por uma piscada de olho e um sorriso.

"Próxima vez?" - pensou ela - "Ele já está pensando na próxima vez? Espera, achocolatado?" - pareceu perplexa - "Que fofo!".

Naturalmente, ele carregou a maior parte das compras, já que o carrinho não cabia no elevador e a esteira rolante já estava desligada. Colocou as compras no porta-malas, abriu novamente a porta para ela e depois dirigiu, mais uma vez com tranquilidade, até o prédio onde Lívia morava. Estacionou o carro no mesmo lugar de horas antes e disse:

- Bom, o que achou?

Ela, que estava desconectando o cinto de segurança, parou. Olhou para ele e, por um instante, esqueceu como falar.

- Eu... achei... incrível. - tímida e aliviada, Lívia apertava agora as mãos para não demonstrar... alguma coisa.

- Nós só fomos no mercado. Guarde o incrível para quando formos no teatro ver Shakespeare, jantar em algum lugar muito bacana ou... bom, ou procure aprender alguma palavra para descrever esses momentos.

Ele. Um cavalheiro. Gentil. Que exalava simplicidade. E que parecia estar tão tranquilo que...

- Como você consegue agir tão naturalmente, e tão descontraidamente?

Ele a olhou nos olhos. Pensou várias vezes no que dizer. Hesitou várias vezes.

- Seja sincero, só isso.

- Está bem. Sinto que meus medos e defeitos já não são capazes de perturbar a tranquilidade que você me faz sentir.

Ao dizer isso, abriu a porta do carro e, desta vez passando pela frente, chegou até onde ela estava. A garoa havia cessado, mesmo assim ele pegou novamente o agasalho e colocou sobre seus ombros após abrir a porta e ajudá-la a descer do carro. Sem falar qualquer palavra, subiram até o apartamento dela. Ela abriu a porta e virou-se, olhando nos seus olhos.

- Obrigado pela noite, foi incrível. - disse ela, agora tranquila e com um leve sorriso. Ainda não assimilara bem o que ele havia dito contudo, naquele momento, era o que ela havia conseguido dizer mantendo uma calma que não era característica sua.

Não, ele não estragaria o momento repetindo o 'procure aprender alguma palavra nova'. Manteve o olhar fixo nos olhos dela. A seriedade que tomou conta daquele momento foi quebrada quando ela, vejam bem, ela e não ele, disse:

- Esquecemos das compras!

- Eu não lembraria se você não falasse.

- Você pode levar para casa se quiser. Afinal, foi você quem pagou.

- Não, eu vou buscar, espera um pouco aí.

- Eu vou com você. - disse ela, agora impulsivamente, como quem está querendo furar a fila no restaurante para pegar o último bife à milanesa do buffet.

Ficou de costas para ele e fechou a porta do apartamento. Pararam em frente ao elevador e, quando a porta abriu, ela esticou os braços e agarrou o braço esquerdo dele.

Ele a olhou e sorriu enquanto entravam no elevador. E aquele incrível durou um pouco mais.