domingo, 20 de março de 2016

Histórias de uma vida não vivida (71)

*Quão memorável pode ser um cheiro? Bom ou ruim, a atenção chamada pelo olfato é intensa porém passageira. A leviandade da boa sensação, sobretudo se provocada por um bom cheiro, faz com que seja relativamente fácil esquecer desse, uma vez que muitos novos cheiros são percebidos pelo olfato. Contudo, uma imagem, ainda que dure poucos instantes, pode ser eternizada na memória diante de um contexto, mesmo que muitas outras imagens surjam imediatamente após, e durem significativamente mais. Não importa, em si, a origem que atiça nossos sentidos. Podemos ter como inesquecível boas ou más lembranças, imagens, sensações, bons ou maus sentimentos, odores, sons. Desconfio que Alguém coordene o que realmente acaba ficando gravado em nossa memória. Só assim é possível conciliar instantes efêmeros com a eternidade de uma lembrança. Ainda que nem sempre saibamos a origem, ou mesmo o porquê, da mesma.

Aquele rapaz e seus tiques nervosos estavam dificultando minhas orações. É sério, várias vezes percebi estar prestando atenção nele e não no Fim da minha oração. Várias vezes quis pará-la, ir até ele e pedir para que saísse do meu campo de visão. Estaria sendo extremamente egoísta e, portanto, minha oração naquele Lugar seria um tanto quanto hipócrita.

Continuei tentando concentrar meus pensamentos em Deus até que o vi levantando e caminhando, lentamente e com a cabeça baixa, até o padre que estava atendendo confissões. Era evidente que um tipo daqueles, estranho daquele jeito, deveria ter um caminhão de pecados.

Não, espera, isso também não está certo. Se estava lá não era só porque queria rezar. Queria confessar minhas culpas para um sacerdote e desfrutar da Misericórdia. Ele também. Por que então passa pela minha cabeça que ele é pior do que eu? Por causa dos tiques nervosos? Que loucura era minha.

Consegui então concentrar meus pensamentos no Cristo ressuscitado e, ufa, perceber quantos e quais erros havia cometido. Foram bons minutos de reflexão até que decidi sentar e esperar o frei ficar livre para me confessar com ele.

No entanto, vi o rapaz voltar ao banco. Caminhando lentamente e de cabeça baixa. O que me surpreendeu naquele momento foi perceber que ele estava chorando. Não como um bebê birrento que não ganha o que tanto pede aos berros. Ele chorava com modéstia, simplicidade, tranquilidade. Veio buscar perdão e certamente percebeu que a Misericórdia é sempre derramada sobre aqueles que a buscam. Estranho ver um rapaz, daquele tamanho, estranho daquele jeito, chorar. Não estava julgando-o, apenas constantando.

Permaneci sentada por alguns instantes, inevitavelmente olhando repetidas vezes para ele. Estava alguns bancos à minha frente e não foram poucas as vezes em que o vi levar as mãos ao rosto, limpando as lágrimas ou, quem sabe, algum líquido meio nojento que poderia estar escorrendo do seu nariz. Era estranho, contudo, que não conseguia parar de olhar para ele, de perceber como aquilo era obra de um Deus magnífico, de querer ter aquela mesma experiência, intensa e visivelmente sincera. 

Eu não podia ver seu rosto então decidi ir alguns bancos para frente, até que, sem perceber, estava de pé ao lado do banco onde ele estava sentado. Pareceu não perceber que eu estava ali pois contemplava o Sacrário com visível admiração, e um sorriso discreto porém perceptivelmente sincero. Fiquei por alguns segundos olhando para ele até que, mais uma vez sem entender o motivo, dei-me por conta de que estava sentada ao seu lado. Ali, então, ele percebeu que não estava sozinho.

Olhou-me, surpreso, mas nada disse. Por alguns instantes, olhei em seus olhos e percebi que ainda havia lágrimas brotando. Esperei ele perguntar o que eu estava fazendo ali, o que queria com ele, se eu estava querendo saber por qual razão ele estava chorando ou algo paranoico deste tipo que, provavelmente, eu perguntaria. Todavia, nada disse. Seu rosto parecia um pouco inchado, evidentemente por causa do choro, mas sua expressão não era de tristeza, tampouco alívio. Parecia, isso sim, feliz. Surpreso comigo, feliz pelo que acabara de experimentar.

Decidi que aquela estranheza deveria acabar ou, pelo menos, deveria tornar-se explícita através de palavras.

- Percebi que você estava limpando as lágrimas com as mãos... então lhe trouxe esse lenço.

Entreguei o lenço a ele, que olhou-o em minhas mãos e, lentamente, segurou-o. Hesitante, finalmente falou.

- Obrigado... mas não quero sujar seu lenço.

"Ora!" - pensei.

- Tudo bem, pode ficar com ele. - disse, sem perceber que estava oferecendo o lenço que ganhei de presente da minha avó, comprado em Roma.

- Não, é que...

- Está certo - eu o interrompi. - Se você não quer ficar com ele, pelo motivo que for, tudo bem. Mas use-o agora e, sei lá, leve para casa, lave-o e me devolva em outra oportunidade.

Ele parecia ainda mais surpreso. Eu, no entanto, estava perplexa com o que acabara de falar - ou com a forma com que o fiz. Ele olhou para o lenço, secou as lágrimas que estavam prestes a cair e, olhando para baixo, voltou a falar comigo.

- Obrigado.

Percebi em sua feição algo que me impedia de direcionar o olhar para outro lugar. Estava admirando-o, verdadeiramente e sem qualquer segunda intenção. Ou estava encantada por conhecer um homem, católico como eu, que era capaz de chorar apenas por reencontrar a tranquilidade sob a Graça do Criador. Ou ele estava chorando pela perda de alguém? Como poderia saber sem perguntar?

- Você... - comecei, hesitante, e parei quando percebi que não deveria fazer perguntas a ele, agora.

- Hum? - resmungou, não sem olhar em meus olhos com curiosidade e afeto.

- Ãhn... nada. Eu vou me confessar agora então... você me devolve quando puder. Ou melhor, se quiser.

Já não importava de onde o lenço vinha. Parecia ter sido tão providente tê-lo levado junto que... era tão sensato que ele ficasse com aquele rapaz... Com ele.

- Está bem. Obrigado de novo. - disse, abrindo um leve, e encantador, sorriso.

Levantei e saí. Após confessar-me, não o encontrei mais no banco. Talvez não o veja mais porque, talvez, ele não more aqui e estava apenas de passagem aquele dia. Talvez ele não seja um católico praticante, ou mesmo católico. Talvez.

Ou talvez ele seja tudo o que pareceu ser. Incluindo o adjetivo encantador.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Reflexões de um maluco (25)

Estávamos longe um do outro. Perto demais, contudo, para ter como impossível uma resposta afirmativa para aquela pergunta que, bem ou mal, toda relação - em algum momento - exige:

"E agora, o que seremos?"

Mesmo as amizades possuem momentos assim. Vejamos. Você conhece um sujeito, engraçado, começa a jogar futebol com ele, conversar sobre carros, sobre política, talvez até sobre religião mas, principalmente, sobre mulheres - quase todos os aspectos - e futebol (ou esportes em geral, se o sujeito for meio fresco ou torcedor do maior rival do seu time).

Chega, sempre, um momento em que a pergunta 'o que seremos, então?' fica implícita. Somente os idiotas não se dão conta disso. Você, se tiver o mínimo de bom senso, começa a refletir. Se o cara tem mentalidade comunista, se não gosta de futebol ou se tenta conquistar a mulher por quem você é apaixonado (vocês estavam esperando que eu dissesse algo do tipo 'se ele não gosta de mulher', né? Homofóbicos são vocês, caros indivíduos) é evidente que não se esforçará para responder à pergunta e, consequentemente, a estará respondendo com um singelo e sonoro (e, muitas vezes, inaudível) "nada". Não seremos nada porque somos incompatíveis.

Ou porque acho você um imbecil. Ou porque você, bem, você é um esquerdotonto fã do Sacomorto ou do Duviviê.

A questão, contudo, não são as amizades que dependem de gostos em comum, mas também de um reconhecimento de que 'vale à pena ser amigo deste homem'.

Eu, hoje, queria falar sobre as amizades entre homem e mulher. Ou melhor, entre mulher e homem (porque, convenhamos, se as mulheres falam mais numa relação é direito delas serem nomeadas primeiramente). Anos atrás saí de onde estava para passar alguns anos sabáticos em outro lugar. Os detalhes da minha vida não importam. Conheci uma menina, ou melhor, uma jovem - que hoje é uma mulher. Nos aproximamos de forma que começamos a nos encontrar com frequência regular. Frequência esta que era diária quando se tratava de conversa.

Pouco importa o meio, estávamos todos os dias sabendo o que acontecia um com o outro. Conhecíamos muito sobre a vida do outro e, evidentemente, chegou a hora em que foi inevitável - e, curiosamente, imperceptível - ter de responder ao 'e agora, o que seremos?'. Ambos solteiros, gostando um da companhia do outro, alimentando uma admiração recíproca e sincera... e nada.

Quando percebemos que era impossível sermos mais amigos do que já éramos e, ao mesmo tempo, que não havia certeza de que o certo a fazer era trocar o beijo na bochecha por beijo na boca, hesitamos. E aí foi o fim.

Começamos a ficar sem jeito um com o outro. A não conversar mais todos os dias. A não contar mais segredos, detalhes de nossas vidas. Tornamo-nos distantes porque fugimos da resposta que parecia ser a menos real - e que era a mais sensata: Hoje, não.

Respondendo desta forma, hoje, ainda estaríamos convivendo frequentemente, mantendo algo chamado amizade e podendo contar um com o outro para nossas dores, e para compartilhar nossas alegrias. Ignorando a necessária, e exigente, pergunta, acabamos por ignorar que não há como ultrapassar certo ponto em uma relação sem responder, ainda que não definitivamente, à pergunta. O 'hoje, não' nos possibilitaria manter a amizade até que chegasse um momento em que teríamos de nos fazer novamente esta pergunta ou um em que não precisaríamos mais fazê-lo. Poderíamos conhecer alguém que despertasse em nós paixão - coisa que nenhum dos dois foi capaz de despertar no outro, embora não esteja certo de que algum dia tentamos fazê-lo. Veríamos como reagiríamos a isto e... a amizade, ainda que diferente, estaria salva da hesitação covarde.

Não se pode fugir de perguntas definitivas. E o 'e agora, o que seremos?' é uma destas.