quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Histórias de uma vida não vivida (63)

*Então você busca definir quem sou através de estereótipos superficiais? Quem sou eu para você? Alto ou baixo, magro ou gordo, narigudo ou lindo, modelo ou réstia? Sua opinião pouco importa para mim. Até mesmo minha opinião sobre o que há de superficial em mim pouco importa. Chega de motivacionais, de discursos segregadores, de preconceitos bestas que querem incitar ódio a quem fala sobre preconceitos e a quem não liga para preconceitos. Por que não posso chamar um velho de velho? Ou disfarçar o tempo trocando a cor da pele? Exageros são necessários para que hipérboles existam em nosso meio e nos façam, ao fim do dia ou mesmo em seu durante, rir sem razão clara, sem explicação lógica, sem sentido racional. Caiamos no riso pelas bobagens que a vida joga aos nossos pés. Caiamos em nosso próprio gozo por pensarmos algo que geralmente não dizemos para evitar conflitos e debates longínquos. Não temos tempo para debates escrotos por razões preconceituosas e moralistas de baixo nível. Chega. Há mais o que fazer. Há mais o que viver. Escrevendo com clareza ou escuridão. Verbais ou substantivadas. Precisamos de mais exageros, de mais risadas, de mais lembranças distorcidas para que mais sorrisos surjam, para que menos clima de morte paire no ar que respiramos.

Certa feita, vários anos atrás, andava pelas quadras tortas e irritantemente retas daquele recinto que ousava chamar de lar. Da falta de bugrismo, chucrismo e sotaque, do excesso de vontade, do ódio pela rima e da sede de ser sempre positivo e nunca negativo, surgiu uma caricatura que apenas meses depois acabou por desfazer-se em si.

A figura do chato, do cara irritante, do sem noção ou de algo semelhante a isso sempre existe em um grupo. Mesmo que o grupo seja formado por dois cegos, surdos e mudos. Sempre um é chato. Um é irritante. Um é a personificação do mala-sem-alça-e-sem-rodinha que todos temos na cabeça por conta da ficção visual dos nossos tempos. Nesses grupos sempre tem um virgem, um negro, um velho, um pirralho, um doente mental e um chato.

Aquele cara era chato, ao meu ver. Contava suas histórias sem noção mais antigas que a cabeça branca do dono do boteco, mais antigas que o bigode do cobrador de impostos que nos torturava a cada sábado. O chato, no caso, vivia perseguindo nossa turma por, supostamente, ter sido convidado ao acaso, marcando um encontro ao acaso com alguém que nem sabia mais que ele, o chato, existia. Aquela estória, que não merece ser chamada de história, era cansativa e repetida a cada encontro. O nosso negro e o chato, que queria muito ser chamado de 'nosso' também, pareciam não ter nada a ver um com o outro. O negro do grupo, como em todo filme BOM - o que exclui 99,999999999% dos filmes nacionais -, era legal. Piadista. Todos riam dele. Era o negro e o velho ao mesmo tempo. Suas histórias do tempo do cri-cri na esquina faziam todos rir. Ele contava, ria. Debochava, ríamos. Se batia, ríamos. Xingava, ríamos. Todos riam. Inclusive o chato.

Quando o chato falava, entretanto, fingíamos rir. Iludíamo-lo com nossas caretas superficiais e vazias na tentativa de distraí-lo enquanto buscávamos um modo de tirá-lo de perto. O chato era tão chato que até isso percebia e, entre uma piada e outra do velho, entre uma tirada e outra do doente mental, uma reclamação e outra do virgem, uma pentelhada e outra do pirralho e mais umas bobagens do negro (e velho), soltava algumas frases sem noção. Sem graça. Chatas.

Mas que aos poucos foram provocando risadas sinceras. Risadas verdadeiras. Risadas engraçadas.

Quando olhávamos para o negro (e velho) passávamos a sentir afeição por ele quase que instantaneamente. Não que fosse bonito ou que pudesse nos oferecer algo além de risadas e boas conversas (que quase nunca faziam verdadeiro sentido e eram recheadas de nostalgia doentia e desconexa). Sentíamos afeto por ele. Não era por ele ser negro. Ou velho. Era por ser ele um cara legal, ao contrário do chato.

Era.

Seria muito bonito se essa história terminasse com um 'o chato deixou de ser chato'. Não. O chato continua sendo chato, porém o pirralho amadureceu. O doente mental encontrou a sanidade. O virgem virou adulto (não sei da vida sexual dele para falar a respeito da virgindade, ok?). O negro continua negro, cada vez mais velho. Cada vez menos legal. O chato não tomou o seu lugar.

Felizmente, repito, o chato não passou a ser legal e não tomou um lugar que nunca foi seu. Insisto, continua sendo chato. Continua contando histórias sem noção mais antigas que a cabeça branca do dono do boteco, mais antigas que o bigode do cobrador de impostos que nos torturava a cada sábado - ah, nostalgia! O chato continua sendo chato, continua contando as mesmas histórias (embora o repertório tenha melhorado significativamente, as histórias são sempre as mesmas), fazendo as mesmas piadas, os mesmos comentários para as mesmas histórias que nós também contamos.

Ele queria ser o nosso chato. Ele virou o nosso chato. O chato legal. O chato amigo. O chato que nos obriga a deixar a rispidez pateta de tempos idos para reconhecermos que sim, erramos. Errei. Não por tê-lo como chato e sim por não querê-lo nosso. A antiguidade - ah, nostalgia! - nos traz exemplos onde cavaleiros - retiro o 'ah, nostalgia!' anterior pois não sou tão velho quanto o velho ( que já não é mais tão negro assim) - guerreavam contra imensos exércitos apenas por valorizarem a lealdade. 

O nosso chato é leal! O nosso chato é amigo! O nosso chato é nosso!

Vencemos, perdemos. Lutamos, apanhamos e batemos. Ficamos parados, corremos - e sempre cansamos! - e não vamos a lugar algum ou chegamos exatamente onde queríamos chegar. A vida correu, parou. Voltou - em lugar, jamais em tempo - e foi. Saímos e nunca voltamos. Mas estamos sempre lá.

Uns pularam da barca. Um foi puxado de um oceano de mediocridade. Ou não também. Tentamos salvar alguns mas eles quiseram encher os pulmões com água salgada. Inclusive o velho. Insistimos, persistimos, fomos tão chatos quanto o, agora, nosso chato fora no começo para conosco porém, mesmo com nossos esforços, perdemos o velho (ex-negro) porque ele quis. Ele que era legal, gente boa, que instigava nosso afeto... ele morreu.

Ficamos com o chato. O que contava a (terrivelmente) chata, e enjoativa, história de seu encontro casual-não-casual com o velho(que ainda era negro!) para tentar ser nosso. Ele, o chato, agora é nosso. Ele conseguiu por ser chato. E porque não somos tão teimosos, tão arrogantes e tão burros quanto parecemos(ou parecíamos) ser.

Não se joga fora um chato como o nosso. O tempo nos faz ver que acertamos.

O tempo me faz ver que acertei.

Apesar de ainda seres um chato, és um cara legal. Apesar de ainda seres um chato, tens todo o meu afeto...

...amigo.