quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Histórias de uma vida não vivida (63)

*Então você busca definir quem sou através de estereótipos superficiais? Quem sou eu para você? Alto ou baixo, magro ou gordo, narigudo ou lindo, modelo ou réstia? Sua opinião pouco importa para mim. Até mesmo minha opinião sobre o que há de superficial em mim pouco importa. Chega de motivacionais, de discursos segregadores, de preconceitos bestas que querem incitar ódio a quem fala sobre preconceitos e a quem não liga para preconceitos. Por que não posso chamar um velho de velho? Ou disfarçar o tempo trocando a cor da pele? Exageros são necessários para que hipérboles existam em nosso meio e nos façam, ao fim do dia ou mesmo em seu durante, rir sem razão clara, sem explicação lógica, sem sentido racional. Caiamos no riso pelas bobagens que a vida joga aos nossos pés. Caiamos em nosso próprio gozo por pensarmos algo que geralmente não dizemos para evitar conflitos e debates longínquos. Não temos tempo para debates escrotos por razões preconceituosas e moralistas de baixo nível. Chega. Há mais o que fazer. Há mais o que viver. Escrevendo com clareza ou escuridão. Verbais ou substantivadas. Precisamos de mais exageros, de mais risadas, de mais lembranças distorcidas para que mais sorrisos surjam, para que menos clima de morte paire no ar que respiramos.

Certa feita, vários anos atrás, andava pelas quadras tortas e irritantemente retas daquele recinto que ousava chamar de lar. Da falta de bugrismo, chucrismo e sotaque, do excesso de vontade, do ódio pela rima e da sede de ser sempre positivo e nunca negativo, surgiu uma caricatura que apenas meses depois acabou por desfazer-se em si.

A figura do chato, do cara irritante, do sem noção ou de algo semelhante a isso sempre existe em um grupo. Mesmo que o grupo seja formado por dois cegos, surdos e mudos. Sempre um é chato. Um é irritante. Um é a personificação do mala-sem-alça-e-sem-rodinha que todos temos na cabeça por conta da ficção visual dos nossos tempos. Nesses grupos sempre tem um virgem, um negro, um velho, um pirralho, um doente mental e um chato.

Aquele cara era chato, ao meu ver. Contava suas histórias sem noção mais antigas que a cabeça branca do dono do boteco, mais antigas que o bigode do cobrador de impostos que nos torturava a cada sábado. O chato, no caso, vivia perseguindo nossa turma por, supostamente, ter sido convidado ao acaso, marcando um encontro ao acaso com alguém que nem sabia mais que ele, o chato, existia. Aquela estória, que não merece ser chamada de história, era cansativa e repetida a cada encontro. O nosso negro e o chato, que queria muito ser chamado de 'nosso' também, pareciam não ter nada a ver um com o outro. O negro do grupo, como em todo filme BOM - o que exclui 99,999999999% dos filmes nacionais -, era legal. Piadista. Todos riam dele. Era o negro e o velho ao mesmo tempo. Suas histórias do tempo do cri-cri na esquina faziam todos rir. Ele contava, ria. Debochava, ríamos. Se batia, ríamos. Xingava, ríamos. Todos riam. Inclusive o chato.

Quando o chato falava, entretanto, fingíamos rir. Iludíamo-lo com nossas caretas superficiais e vazias na tentativa de distraí-lo enquanto buscávamos um modo de tirá-lo de perto. O chato era tão chato que até isso percebia e, entre uma piada e outra do velho, entre uma tirada e outra do doente mental, uma reclamação e outra do virgem, uma pentelhada e outra do pirralho e mais umas bobagens do negro (e velho), soltava algumas frases sem noção. Sem graça. Chatas.

Mas que aos poucos foram provocando risadas sinceras. Risadas verdadeiras. Risadas engraçadas.

Quando olhávamos para o negro (e velho) passávamos a sentir afeição por ele quase que instantaneamente. Não que fosse bonito ou que pudesse nos oferecer algo além de risadas e boas conversas (que quase nunca faziam verdadeiro sentido e eram recheadas de nostalgia doentia e desconexa). Sentíamos afeto por ele. Não era por ele ser negro. Ou velho. Era por ser ele um cara legal, ao contrário do chato.

Era.

Seria muito bonito se essa história terminasse com um 'o chato deixou de ser chato'. Não. O chato continua sendo chato, porém o pirralho amadureceu. O doente mental encontrou a sanidade. O virgem virou adulto (não sei da vida sexual dele para falar a respeito da virgindade, ok?). O negro continua negro, cada vez mais velho. Cada vez menos legal. O chato não tomou o seu lugar.

Felizmente, repito, o chato não passou a ser legal e não tomou um lugar que nunca foi seu. Insisto, continua sendo chato. Continua contando histórias sem noção mais antigas que a cabeça branca do dono do boteco, mais antigas que o bigode do cobrador de impostos que nos torturava a cada sábado - ah, nostalgia! O chato continua sendo chato, continua contando as mesmas histórias (embora o repertório tenha melhorado significativamente, as histórias são sempre as mesmas), fazendo as mesmas piadas, os mesmos comentários para as mesmas histórias que nós também contamos.

Ele queria ser o nosso chato. Ele virou o nosso chato. O chato legal. O chato amigo. O chato que nos obriga a deixar a rispidez pateta de tempos idos para reconhecermos que sim, erramos. Errei. Não por tê-lo como chato e sim por não querê-lo nosso. A antiguidade - ah, nostalgia! - nos traz exemplos onde cavaleiros - retiro o 'ah, nostalgia!' anterior pois não sou tão velho quanto o velho ( que já não é mais tão negro assim) - guerreavam contra imensos exércitos apenas por valorizarem a lealdade. 

O nosso chato é leal! O nosso chato é amigo! O nosso chato é nosso!

Vencemos, perdemos. Lutamos, apanhamos e batemos. Ficamos parados, corremos - e sempre cansamos! - e não vamos a lugar algum ou chegamos exatamente onde queríamos chegar. A vida correu, parou. Voltou - em lugar, jamais em tempo - e foi. Saímos e nunca voltamos. Mas estamos sempre lá.

Uns pularam da barca. Um foi puxado de um oceano de mediocridade. Ou não também. Tentamos salvar alguns mas eles quiseram encher os pulmões com água salgada. Inclusive o velho. Insistimos, persistimos, fomos tão chatos quanto o, agora, nosso chato fora no começo para conosco porém, mesmo com nossos esforços, perdemos o velho (ex-negro) porque ele quis. Ele que era legal, gente boa, que instigava nosso afeto... ele morreu.

Ficamos com o chato. O que contava a (terrivelmente) chata, e enjoativa, história de seu encontro casual-não-casual com o velho(que ainda era negro!) para tentar ser nosso. Ele, o chato, agora é nosso. Ele conseguiu por ser chato. E porque não somos tão teimosos, tão arrogantes e tão burros quanto parecemos(ou parecíamos) ser.

Não se joga fora um chato como o nosso. O tempo nos faz ver que acertamos.

O tempo me faz ver que acertei.

Apesar de ainda seres um chato, és um cara legal. Apesar de ainda seres um chato, tens todo o meu afeto...

...amigo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O vazio de viver e só(56)

E agora estou aqui, parado, olhando para a chuva fina que cai sobre o telhado da academia ao lado. Olhando para os trens que, ao fundo da paisagem mas ainda assim próximos de mim, trafegam para algum lugar.

Lugar tão distante daqui quanto meus pensamentos. Quanto a mente vai ao olhar umas gotas de água caírem constantemente sobre o chão que piso todos os dias.

Tento encontrar alguma resposta para tantas perguntas. Sempre elas, perguntas. Sempre dúvidas. Sempre as incertezas. Sempre a falta de convicção para tomar decisões.

Ir ou ficar. Iniciar, permanecer ou terminar. Caminhar ou correr. É banal, é simplista, é minimalista.

Ainda assim, duvidoso e real.

Como letras escritas no ônibus, tortas e ao mesmo tempo retratos quase perfeitos de algo. Ou de alguém.

Curto ou longo, próximo ou distante, optativo ou obrigatório, bem ou mal, continuo aqui.

Parado.

Olhando a chuva fina trazer conforto térmico, água para as plantas, para as calhas e para as poças que molham tênis.

Olhando a chuva trazer qualquer coisa que não seja uma resposta.

Queria apenas uma resposta para uma pergunta. Qualquer uma, mesmo que nunca mais conseguisse encontrar as respostas para as outras.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O vazio de viver e só (55)

Deveria ser um dia diferente, com um significado especial, diferente dos outros dias do ano. Tantos anos se passaram e durante um dia em cada um deles pude sentir algo único, algo que não estava presente nos outros dias do ano, sendo esses melhores ou piores.

Acho que isso ficou para trás. Seja pelo motivo que for, pela fase que esteja passando, pelo cansaço acumulado ou qualquer preocupação pontual, não há motivo específico e forte para comemorar algo que, ao menos aparentemente, não faz diferença alguma.

Não sei onde a especialidade do dia oito de outubro se perdeu. Ou se está escondida apenas. Tampouco faço ideia do que isso representa ou significa. Talvez seja do momento. Talvez não.

Queria poder dizer que amanhã será um grande dia. Estaria sendo hipócrita, pois não acredito nisso. Em todos os anos ansiei pela chegada desse dia entretanto, nesse ano, não é o caso. Como se nada representasse, como se não houvesse qualquer motivo para comemorar.

Ou como se todos os motivos fossem pouco diante de algum motivo contrário que não consigo definir ou explicar.

Tudo é suposição. Não. Quase tudo.

Amanhã será só mais um dia.

Just one day.

Just a day.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pedaços de um pensamento (90)


Há algo nas palavras que saem do coração, como cantaram por aí algum dia, que encanta e faz até o mais cético dos homens repensar sua existência racional e, imaginariamente, autoexplicativa. Procurando por respostas não se chega a lugar algum. Procurando pelas perguntas, idem. Somos ínfimos, insignificantes diante da multidão humana, da imensidão da existência do universo e, creio eu, somos menos do que nada - caso isso seja possível - diante do Criador.

Acreditando ou não em Alguém como fonte primária de tudo o que há - inclusive do próprio tempo - haverá de concordar, senhor ou senhorita, que nossa mente nunca chegará longe o suficiente para saber coisa alguma. Procura-se algum ideal, justiça, lealdade, prosperidade ou caridade através de algum valor, como coragem, persistência ou humildade. Procuram-se diversas outras coisas e, no fim, tudo o que somos, tudo o que fomos, o que seremos e o que almejamos, ou mesmo as coisas das quais desistimos, e, mesmo somando tudo isso não somos nada. Nunca seremos nada.

Nossas perguntas são insignificantes. 'De onde viemos?' importa mesmo em um mundo onde um ser humano lhe pede um pedaço de pão pois está há dias sem comer? Tantas outras perguntas não significam nada quando batemo-las de frente com a realidade. Da mesma forma, pela outra ponta da linha desse raciocínio improvisado - como tudo o que há em minha mente há anos -, a realidade torna-se um grande nada quando confrontada com frases como 'o mundo precisa de mais pessoas como você'.

E tudo isso ainda é pouco, é nada, irrelevante.

Palavras são irrelevantes. A vida é feita de coisas irrelevantes. Porque não somos nada, lembra?

Concordando ou não com isso, acreditar que somos algo além de nada é possível e justificável. 'Só posso viver uma vida então, como não posso ser algo além de nada, esse meu nada é tudo. O meu tudo'. Boa forma de pensar. Talvez seja egoísta. Talvez realista. Ou apenas algo para encerrar um assunto incômodo onde todos podem falar algo e, at the same time, estarem errados.

Quando olho para trás e vejo minha insignificância perto de outros seres humanos, de outras situações, de outras vidas e, claro, de outros sentimentos, percebo que há algo lá que não há mais hoje. Uma vontade de mostrar o que se é pensando que 'ninguém sabe como é', 'ninguém é capaz de entender', e um arrogante 'tenho que ensinar porque ninguém sabe disso'. Vontade essa que não existe mais.

Porque havia algo que transladava as boas intenções, jogando-as entre as más. Havia algo que tirava a inocência de busca implacável pelo que é bem e colocava suaves e imperceptíveis doses de mal nela. Havia algo que fazia transparecer a raiva, a decepção, as dores de um passado recente e a culminada arrogância presente.

Haviam as palavras doces de sonhos, verdes, inacabados. Haviam as palavras das decepções com as próprias falhas.

Houve, também, uma queda brusca na satisfação pessoal, sendo necessários anos para reconhecer que ainda estou longe de onde quero estar. Pessoalmente falando.

Não um lugar, mas uma pessoa.

Talvez seja hora de recomeçar em outro lugar. Com outras histórias. Com uma nova visão. Com novas intenções. Com palavras diferentes e uma mentalidade nova, madura e humilde.

Porém é difícil fazer o novo acontecer. Deixar que ele venha e se faça realidade na prática.

O jeito é levar parte do passado comigo. Parte das palavras que, embora tenham rareado, ainda fazem do passado algo que, apesar de ser quase todo irrelevante, mostrar muito do que quis e consegui ser.

E do que quis e não consegui conquistar.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O vazio de viver e só (54)

Onde foi que as coisas começaram a desabar? 

Como, de repente, tudo o que parecia ser tranquilidade tornou-se uma tempestade sem fim?

Para onde ir, se não quero sair de casa?

Por que ficar, se não aguento mais nada daqui?

Cansaço algum justifica essa inquietação interior. A busca por alguma resposta, que antes era uma obrigação, hoje é uma negação. Não quero respostas, necessariamente. Talvez nem entendimento para as questões acima seja necessário. Quero apenas vida. Viver.

Quero sentir felicidade correndo pelo meu corpo e fazendo com que meus pensamentos tenham algum sentido ou, ao menos, um reles significado.

Tenho querido que tudo acabe de uma vez, sem saber ao certo qual é o final. O que virá depois. E nem mesmo o porquê de isso, ou aquilo, estar acontecendo. Antes ou agora.

Desconheço o tempo.

Parece que as palavras não conseguem mais ser o que eram. Que as pessoas não conseguem mais fazer a diferença que faziam. Que os ideais, os sonhos e as orações não tem mais sentido.

Parece que nem mesmo os sentimentos ainda são plausíveis.

Quem me dera poder escrever alguma frase que, por acaso, trouxesse algum significado a isso. Àquilo. Ou sei lá o que mais. Ou menos. Ou. Ou. E.

Porém, é fácil visualizar que nada disso tem sentido sem que assuma que algumas coisas mudaram em mim. E, embora possa dizer que hoje tenho um conhecimento próprio que em nenhuma outra fase, para outros eus, tivesse, não resolve. Não soluciona. Não explica.

Tantas negações, dúvidas e perguntas. Nada a dizer.

São apenas pensamentos.

Lamentos de um, ou mais finais, cada vez mais próximos.

Onde foram parar os sorrisos sinceros?

sábado, 13 de setembro de 2014

O vazio de viver e só (53)

'Lembro que depois de ouvi-lo, consegui dizer, apenas...

- Amigo, o amor, em si, é idiota. Porque é mais importante fazer alguém feliz do que ser feito feliz. E sendo fonte de felicidade para alguém, você cresce, evolui, torna-se alguém melhor. Mesmo que viva para o resto da vida infeliz. Você é, mas para alguém, não para si.

Ele então parou de estalar os dedos. Secou algumas das muitas lágrimas que escorreram pelo seu rosto e parou. Permaneci calado, a espera do que ele diria. Talvez voltasse a chorar, talvez começasse a gritar ou talvez, e até muito provavelmente, me chamaria de idiota, insensível, estúpido e utópico, ou algo do tipo. Talvez me chamasse de hipócrita. Em vez de encher a boca de xingamentos, levantou a cabeça e fazendo com que seus olhos encontrassem os meus, acertou-me um balaço no meio da testa.

 - Você prestou atenção no que disse? Você acredita no que acabou de me dizer?

Na testa. No olho, No meio do peito. Ou em todos os lugares ao mesmo tempo. Rambo passou por aqui, pensei - em um daqueles momentos em que não sinto orgulho do meu senso de humor.

- Eu...

Hesitei.

- Eu sabia. Você nem sabe do que está falando. Tirou essa frase de onde? Lewis? Dostoiévski? Hemingway?

- Eu não...

- Ah, sim, Bukowski. Um porco tão medíocre quanto você.

- Eu...

Então ele levantou. Saiu. Há mais de uma hora. Eu, em contrapartida, continuo aqui, sentado, olhando para onde ele estava como se ainda o estivesse. Era como se seus olhos continuassem atirando violentamente contra mim algo que eu não... Mentira. Negar que sei do que ele estava falando é pior do que aceitar que sou apenas um covarde. Tão somente um covarde. Nada além de um covarde egoísta.

Um covarde egoísta. Que não quis ir em frente por permitir que os lamentos esbravejados de algum lugar interior vencessem aquilo que era o certo, naquele momento.

Que posso eu falar sobre o amor? Logo eu que bebi tanto do poço do orgulho e cerquei minha vida com muros tão altos que ninguém foi capaz de atravessar. E aqueles que tinham capacidade desistiram ao perceber que quando estavam no topo, prestes a entrar na minha vida, eram agredidos pelos meus inconscientes golpes sociopatas, antissociais e, insistentemente, egoístas.

Talvez agora que reconheci o quão egoísta sou consiga... não. Melhor não.

Deveria pedir desculpas para ele. Para ela. Para todos eles e elas que fizeram muito mais do que deveriam e, por minha culpa, saíram machucados. Deveria pedir perdão por não saber.

Por não querer.

Por não conseguir.

E, principalmente, por não ter tentado, antes, ver o que só estou conseguindo ver agora, sozinho, olhando para o nada com uma imagem ainda em mente. Aqueles olhos castanhos.

Espera.

Os olhos dele não eram castanhos.'

Silenciosa a garoa cai. Silenciosa a garoa caía. Silenciosa a garoa caía sobre seus cabelos. Silenciosos os seus cabelos caíam sobre seus olhos. Silenciosos os seus olhos choravam. Silenciosas as suas lembranças ruíam.

Silencioso, e triste, o seu coração batia.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Histórias de uma vida não vivida (62)


*Bem que tentei lembrar, trazer à tona e mostrar que nada do que pensava que havia sido fora de fato. Nenhuma imagem bate, nenhuma lembrança se encaixa. O monstro existe, sim, mas como não consigo lembrar de onde surgiu, por que, como, quando, especificamente... não sei de onde saiu e para onde foi. Sei que se esconde. Por algum motivo desconhecido, novamente. Repetidamente acabo brigando com isso. Com ele. Com aquilo. Com alguma coisa. Troco socos sem piedade. Levo socos violentos. Saio machucado e, talvez, apenas eu sofra algum dano. Isso acaba? Algum dia acaba? Não. O que foi continuará sendo para sempre. Mesmo que novas histórias surjam. Mesmo que uma vida nova seja vivida. O que foi sempre fará parte. Por isso o monstro se esconde. E algumas vezes para bater. Por que algumas vezes? Por que ALGUMAS vezes? Sempre quando estou desprevenido. Acho que alguma coisa consegui tirar dele da última vez. Uma lembrança escondida, remota. Pensamentos vagos com algum significado. Oculto. Parcial. O que foi sempre será. De alguma forma sempre será.

Lembro que eram dezesseis primaveras passadas. Ou estava com doze? Talvez catorze anos. Certo, estava entre os 10 e os 14 anos ou, na pior das hipóteses, se passaram pelo menos oito anos. Seria bom saber, talvez houvesse algo no contexto da época que pudesse explicar o fato.

Caminhando pelas esquinas, cruzando ruas em frente a carros e olhando para rostos de pessoas. Tudo isso é da época. Daquela época. Os passos eram curtos, medrosos e os olhares, bem, quando não eram para o chão ou para meus tênis quarenta e dois- ou seriam quarenta? - eram para pessoas que me olhavam de um jeito estranho.

Ao menos para mim, naquela época, era estranho. Meu cabelo era estranho. Minhas ações eram estranhas. Minha rebeldia, contida para uns e visível para outros, era estranha. Entre bater no portão, socar uma almofada e desabafar com uma paulista sem noção, tudo isso no mesmo dia, e ir até o centro comprar uma revista que falasse de Dragon Ball, naquele dia eu não tinha mais do que dois reais.

Quem compraria uma revista do Dragon Ball com dois reais? Nem há 20 anos atrás, suponho.

Caminhando, falando sozinho, olhando e não querendo ser visto. Era um maníaco em potencial. Um doente mental que em alguns anos sairia com um canivete nas mãos e cortaria alguma goela para mostrar que o mundo é injusto, que a vida era uma droga e que nada poderia pará-lo.

Nada disso se confirmou. Para o sujeito da goela que seria decepada, ainda bem que tudo não passou de louca suposição.

Frases tão curtas como os passos. Tirou os dois reais do bolso, nota nova, novíssima. Talvez recém tivesse sido colocada em circulação. Assim como todas as notas de dois reais que, em algum tempo, foram novidade surpreendente - como essas porcarias de notas com tamanhos diferentes o são hoje. Minha carteira não consegue receber uma nota de cem reais por conta do seu tamanho. É bem verdade, também, que não tenho ganhos para colocar uma nota dessas na carteira.

Falando isso, onde está minha carteira?

Ah, sim, a nota de dois reais. Olhei e guardei-a. Sem revista mas com vontade de gastar - aquele maldito instinto capitalista! - continuei caminhando. 

Farmácias aqui e ali. Duzentas delas em uns duzentos metros de rua. Quanto dinheiro não lucram esses revendedores de drogas legalizadas, ein? Resolvi entrar. Em uma delas me pesei.

Saudades do tempo em que pesava o mesmo que o saco de cimento.

Saí. Os dois reais estavam gritando para saírem do bolso de um maníaco e repousarem na caixa registradora de traficantes de drogas. Legalizadas sim, mas ainda drogas. Entrei em outra. A do lado. Placa azul. Quase no final da rua em aclive. Olhei para cá, para lá. Pensei em como pedir. No que pedir. Lembrei. Ah, a lembrança da infância, essa fase que nos atordoa pelo resto da vida através do inconsciente.

Uma atendente veio até mim. Feia. Devia ter uns quarenta anos - e eu com quarenta quilos, 'no way!' - e era tão bela quanto aquela colega que havia jogado um rato... UM RATO na cabeça de alguém, dias atrás. Mundo injusto... ou não.

- Posso te ajudar? - ela perguntou, tentando sorrir. Entretanto, sua forma de sorrir não era boa.

Pensei em dizer que daqui a alguns anos teria um canivete e viria cortar sua goela mas... ela talvez risse. Com um sorriso menos forçado que essa tentativa fracassada de demonstrar simpatia. Poderia ter desabafado, contado sobre minha vida, meus planos arruinados por esse mundo maldito...

- Tem aqueles chicletes de farmácia?

Oh, céus, como eu era ruim nisso.

- Valda?

- O verde?

- É.

- Então é esse mesmo.

- Deixa eu ver...

E gritou para um colono que estava lendo o jornal de quarta.

- Ei, Cidão, ainda tem chiclete valda?

Óbvio que, para minha completa desgraça, ele gritou:

- Não, comi o último.

Mudança de planos, a goela cortada não seria a dela, mas a dele.

- Ouviu?

Ela poderia ter me dito não. Acho que a goela vai ser a dela mesmo.

- Sim, são bons.

- É.

- Uma pena, queria um.

Eis que o Cidão gritou:

- Posso te dar o meu, quer? - e riu debochadamente.

Sim, é a goela dele que vai. Ou iria. Não sei, estou confuso com tantas mudanças temporais. Preciso rever meus conceitos. Minhas lembranças. Minhas histórias. Esses fragmentos de vida que voltam ocasionalmente para atordoar minha já conturbada situação. Bem, apenas minha mente é fonte de problemas, distúrbios e talvez meu quarto seja o único resquício de conturbação. Não sei bem, estou em dúvida.

Não consigo lembrar o que fiz com os dois reais já que não comprei chiclete algum.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Pedaços de um pensamento (89)

Acordei procurando uma sensação. Uma prova. Uma completa, mesmo que singela, demonstração que objetivamente mostrasse que ainda não havia nada perdido. Cansado, levantei e fui ao banheiro. Lavei o rosto e nada. Escovei os dentes e nada. Usei o vaso sanitário e nada.

Voltei para o quarto, troquei de roupa, coloquei meias e tênis, o crucifixo no pescoço, o relógio no pulso e, nada. Tudo isso faço quando sonho. Tudo isso faço em pensamento. Ou, ao menos, posso fazer. São coisas vagas. Rotinas vagas. O sonho, aquele que surge inconsciente, por algum motivo que ninguém sabe explicar - se é que o há -, pode muito bem retratar situações rotineiras.

O que nos prova que nossa vida não é um grande sonho? Que nossa existência minúscula não é apenas um momento de hibernação e que, a qualquer momento, vamos acordar em um corpo que não parecerá ser o nosso? O que, parecendo, estará vivendo uma vida diferente dessa?

Como esse pensamento, que foi transformado em palavras escritas, pode ser confundido com algo do espiritismo - não sei se vai, mas pode - e, claro, como quero manter minha vida longe disso, tive que procurar melhor. Olhei na janela e a veneziana parecia estar chorando. Como as paredes não o estavam também, a tal da 'umidade' não era desculpa. Fisicamente, havia água escorrendo ali porque no quarto havia uma fonte de calor que, encostando na veneziana - fria por conta da temperatura externa -, condensava a água que ali havia.

A fonte de calor era o meu corpo. E como ninguém sonha que a veneziana está suando por conta do 'calor' do quarto, pude concluir então que estou vivo e que isso não é um sonho.

Vida!

domingo, 10 de agosto de 2014

Confusão

Como uma tsunami que, sem causar vítimas, destroça e vira do avesso tudo pelo qual passa, tem sido o tempo e suas surpresas, quase todas invisíveis e interiores, dentro de mim. Não sei o que dizer, agora, quanto a isso. Está tudo revirado. Destroçado. Bagunçado. E com um monte de lama entupindo motores e objetos ocos, completa ou parcialmente.

É preciso entender alguma coisa antes de tentar jogar algumas palavras para fora.

Estou confuso e angustiado, apenas isso.

Reflexões de um maluco (24)



Tem sido tão raras as vezes que meus olhos conseguem ver que não sei mais quais reações, do tipo bola de neve jogada do alto de uma montanha coberta por... neve, ocorrem após isso. Isto. Aquilo. Enfim.

Não acho que seja triste. Também não posso dizer que é algo que traz felicidade, bom. A reação, a consequência da visão ainda é, e há muito tempo diga-se de passagem, bem entendida, compreendida, assimilada, definida. Definições faltam por não haver muitas certezas em meio a tantas dúvidas. A tragicômica mania de imaginar, com alguma relevância e nenhuma imprecisão ou impaciência, e, ao ver, perder qualquer definição, acaba sendo apenas mais uma lenha para um inverno caótico que tem sido os últimos milhões de segundos.

Também é preciso deixar claro que não existe. Como também é bom dizer que existe. Porque a dúvida do que há, ou não, torna tudo mais difícil. Do ver ao ouvir, do tocar ao sentir. Tudo é indefinição, tudo são dúvidas, tudo são lembranças. Felizes e tristes, não necessariamente nessa ordem.

Dia desses imaginei falar para algumas pessoas, de alguma forma, quão grandes haviam sido alguns dos erros e o que me tinham tirado, o que haviam destruído na vida daquele que os falava. Não sei quem eram as pessoas, não sei porque haveria de chegar ao ponto de lembrar algumas das minhas grandes falhas, e principalmente da maior. Não sei. Tudo são dúvidas, tudo é ausência de definição, tudo – ou quase tudo – é mera passagem de tempo.

Talvez, veja bem, talvez, essas dúvidas, sejam elas inúmeras ou apenas uma solitária dúvida que se apresenta de diversas formas por diversos motivos, só venham à tona com alguma frequência porque não há possibilidade de encontrar um ponto final para alguma parte.

É bem verdade que grandes erros geram pontos finais definitivos mas, ainda assim, e apesar de poder definir muito bem o que, por que e como ocorreram tais erros, não consigo encontrar a tal capacidade de lidar com isso como se fosse mero aprendizado.

Porque não acho que o seja. E talvez nunca ache.

Se a vida é outra, hoje, e se boa parte desses erros acarretou em coisas diferentes, tudo bem. Deus sabe o que faz, sabe como como conduzir, sabe que portas abrir e quais fechar. Entretanto, apesar de não pensar nos condicionais presentes – pois, caso o fizesse, necessitaria de um manicômio exclusivo – seria bom conseguir olhar para trás e ver um ponto definitivo.

Talvez, e mais uma vez talvez, com algo que não fosse o nada constante com um raríssimo e quase instantâneo tudo, houvesse muito mais tranquilidade para lidar com as lembranças que vem e, claro, com o presente que há. Dentre todas as diferenças entre o tudo, o nada, o se e o que de fato há, a maior está na própria existência em si. E a única coisa real é o que há.

Mas, se o que não se vê também é real, como acredito que seja, o conflito é bem mais complicado, as dúvidas são muito maiores.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Reflexões de um maluco (23)

A vida, por si só, é uma grande ironia.

Você sabe quando começou, mais ou menos. Sabe de onde veio. Sabe se foi ou não planejada a sua vinda - ou, ao menos, esperada. E sabe que tudo na vida tem um começo. O problema, então, passa a ser o final, e aí é que, antes dele, faz-se presente a ironia. Você não sabe quando é. Como será. Se verá ou não e, se tiver olhos ou tato para isso, como será. Talvez não seja tão claro mas você sabe do princípio com certeza, mesmo que não lembre de nada. E não sabe nada sobre quando tudo isso terminará. O meio do caminho, a vida em si - que é tudo entre a concepção e o último batimento cardíaco - é uma ironia por consequência de seu início e fim um tanto imaginativos.

E quase nada racionais.

Durante a existência há inúmeras possibilidades e elas só aumentam quando escolhas são feitas. São muitas palavras para pouco dizer, muita história para pouco personagem e, entretanto, algo continua aqui. Sem muita semelhança com o que chamamos de vida mas, ainda assim, cheio de ironias que para alguns são doces e para outros são amargas. Insisto em dizer sem dizer, em escrever sem significar porque não existem muitas coisas com ironias tão claras quanto textos que dizem muito sem dizer nada.

É como, bom, deixa pra lá. Os exemplos não deixam clara a ironia, apenas a confusão ou falta de qualquer coisa - ou melhor, de tudo.

Por fim, até que enfim, irônico, além da vida vivida - e daquela imaginada - há um balaio de situações que não fazem sentido. Como, por exemplo, tentar entender o que existe ou acontece e, e alguma forma, ver uma explicação vencendo uma loteria mas no cartão de apostas de outra pessoa. Ninguém mandou riscar os números e não apostar. Tampouco houve alguém que quis ganhar sem jogar. Das impossibilidades surgem certezas e essas são jogadas diante dos olhos como se significassem tudo, porque acabam significando mesmo tudo, ao passo que pareciam ser apenas um mero detalhe, casual, inútil e desconfortável.

Como sentar no concreto e ver alguém marcando o gol que você deveria marcar, comemorando uma vitória que deveria ser sua e, principalmente, dando a entender que a culpa de que tudo isso, que deveria ser seu, ocorra diante dos seus olhos mas na vida de outra pessoa.

Irônico como ver uma dondoca passeando com seu poodle cuidado com shampoo importado mas amarrado em um fio de luz.

Apaguem as luzes, o piloto está com enjoo.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O vazio de viver e só(52)

Difícil perceber o mal feito a si mesmo, quando as atitudes que o dão origem são interiores, próprias daquele que sofre. Como um frio que desaparece, um calor inimaginável que vem e faz as paredes chorarem, com alguma literalidade, o que parece vir de fora acaba por apenas ser manifestação do que ali já estava.

Como ando em falta com tantas outras pessoas, para comigo não é diferente. Ando em falta comigo, com minhas leituras, escritas, sonhos, vontades, ações e até mesmo necessidades. A casa não varrida, a pia entupida, a máquina de lavar estragada e tantas outras necessidades básicas da rotina são deixadas de lado por algo que não pode ser chamado de nada. Seja por algum dano cerebral ou físico, por uma psíquica falta de algo ou sobra de tudo, não é mais possível aceitar passivamente e com indiferença brutal essa, isso, este ou aquele troço, coisa, semelhante ou diferente que pode ser considerado resumo de uma obra inacabada e absurdamente imperfeita.

Não que a perfeição seja o alvo porém é inegável que ela deva ser um ponto a ser mirado, porque mirar menos do que isso é aceitar o medíocre, o inacabado, o fracasso. Qualquer que seja sua máscara, cortina ou fantasia.

Chego a um ponto onde não tenho controle sobre muita coisa. Não por estar sendo forçado ou amarrado ou sinônimo direto ou indireto. É por ter simplesmente largado para o nada um tudo que deveria estar nas minhas mãos. Deixei, sem ter motivo, ou tendo todos os motivos possíveis, que alguma explicação besta desse asas a uma indiferença quanto a quase tudo o que cerca e ao qual deveria estar cercando.

Sem sequência, tchau.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Histórias de uma vida não vivida (61)

*Se está mesmo tão distante, como pode parecer estar tão perto? A ilusão de um pensamento vago não é menor do que a de uma visão em dia cinza. A busca pelas respostas para aquela e quaisquer outras perguntas não afasta da realidade porém, em verdade, também não aproxima. Fugas e vindas, certezas e condicionais, tudo em um pensamento, em uma realidade, em uma vida. Aquilo que foge dos meus olhos não foge do pensamento mas por que, céus ou terras, o que foge do pensamento não foge dos olhos? De onde vem os brilhos que clareiam e permeiam essa noite, tão longa noite, que parece não ter fim? Por que razão a busca pela resposta de qualquer pergunta sobre esse interminável dia escuro é tão mais difícil do que, pura e simplesmente, encontrar em um par de olhos fechados - ou abertos, a escuridão pode ser amiga! - uma sensação distante que parece ser melhor do que a que está mais próxima?

- Você sabe, Marcos, que não vim aqui para ficar com alguém, certo?

- Sei, sei e sei. Mas aproveita a noite, se diverte, toma umas comigo e, enquanto eu estiver agarrado naquela baixinha com a camisa do Iron Maiden, você fica olhando para cima e pensando por que diabos não tem uma Bud sequer nesse bar no centro dessa capital.

- Por que a baixinha?

- Camisa do Iron. Ela é diferente. É única. Tem bom gosto.

- E um decote generoso, não?

- Ah, camisa de banda de rock rasgada para mostrar o decote. Viva as excêntricas! Morte ao modismo!

- Viva! Morte!

- Então, por que acabou?

- Não sei. Ela, eu, os dois. Era como se não falássemos mais a mesma língua. Como se olhássemos um para a Itália e o outro para o Japão. Sabe... não dá certo.

- Sei como é. Minha última namorada era...

- Parecida com a baixinha com camisa do Iron.

- Não. Bom, era. Mas não, para com isso. Ela era muito fã de umas coisas normais. E isso não serve pra mim.

- Sei.

- É, e daí ela queria me mudar, que eu gostasse das mesmas coisas e aquele troço ficou chato. Brigávamos todo dia. Ela 'sim' e eu 'não'. Ela 'agora' e eu 'nunca'. Ela 'mais' e eu 'menos.

- Exato. Por aí.

- E o que mais?

- Deixa pra lá, não quero falar sobre isso AGORA, entende?

- Certo. Então... qual é a próxima da lista?

- Que?

- A próxima. Em quem você vai investir? Porque nós dois sabemos que você não gosta de ser solteiro então... qual é a próxima?

- Hahaha, verdade, mas não tem lista, não tem próxima. Agora é hora de...

- Olhar para trás e voltar à primeira opção de sempre?

- Não começa.

- Ela era, e é, incrível. É diferente. É animada. Gosta de rock. Gosta de futebol. Gosta de ficar em casa e assistir filme. É perfeita para você!

- Não não. Ela namora. Não fala mais comigo desde que começou a namorar e... não sei, acho que não daria certo.

- Burro! Tongo! Lacaio! Mil vezes arcaide!

Continuaram ali, comendo polenta frita e azeitonas. O outro, entre uma cantada e outra na baixinha com a camisa do Iron Maiden, não parava de fazer descer pela goela uma(várias) Polar bem gelada, no capricho. Ele, olhava e ria dos tocos que o outro levava da baixinha, mantendo-se sóbrio porque, afinal, alguém precisava dirigir o carro.

- Gostou daqui?

- Muito legal. Música boa, não tem aquele fedor de fumaça, a polenta tá frita no capricho.

- Só faltava uma boa companhia, não?

- E você é o que? Acha que não é divertido ver aquela nanica ouvir suas cantadas in....falíveis e podar você sem dó? Você está sendo uma grande companhia!

- É é, haha, vai tirando onda.

Entre uma mordida e outra, uma roída no caroço de azeitona e outra, pensava em como havia parado ali. Óbvio que o amigo estava se comportando e sendo menos maloqueiro do que era. Essa não era a vida que ele queria mas, admitia, o ambiente era bom, a música era boa e, caramba, nunca havia comido uma polenta frita tão boa!

- Opa, duas da manhã, precisamos ir.

- Tá passando mal?

- Não não, mas não estou em condições de dirigir.

- Ah, sério?

- Haha, sério sim, seu irônico doente.

- Você não deu nem um beijo na baixinha e quer ir embora, desistiu ou o namorado dela, provavelmente um bombadinho, está chegando e você corre o risco de levar uma surra histórica?

- Nem um nem o outro. Para que você saiba que sou bom, peguei o telefone dela. Hoje não vai dar porque temos que buscar uma amiga minha na rodoviária.

- Não entendi. Você deu em cima da baixinha para treinar para a amiga que está chegando?

- Claro que não. Amiga é amiga. E eu só dou em cima das minhas amigas que não valem nada, daquelas que são amigas com aspas e circunflexo.

- Consegue fazer um quatro com as pernas?

- Duvido, acho mais fácil parir uma bigorna no vaso do que fazer isso. Acho que bebi bem hoje.

- É, mas não vá dormir porque não sei chegar na sua casa.

- Claro. Se acontecer, você entra em um motel e dormirmos lá.

Sim, ele era assim mesmo. E, mesmo sendo tão diferente, era um bom amigo. Excêntrico, bagaceiro, de um mundo diferente, com uma vida completamente diferente mas... um bom amigo.

Saíram. O outro o guiava pelas ruas. Direita, esquerda, reto, faz o retorno e tal e coisa até chegarem na rodoviária. O outro desceu.

- Já volto. Se o guarda vier multar, você sai, dá uma volta e volta no mesmo lugar.

- E se eu não me achar para voltar aqui?

- Bom, aí ferrou.

Foi. Demorou. Cinco, dez, quinze minutos. Nem um guarda. Nem o amigo. Nem uma amiga. Noite escura. Silenciosa. Nem parecia rodoviária de capital. E mais cinco, dez, quinze minutos. Até que ouviu uma batida no vidro. Era o amigo.

- Achei que não vinha mais.

- O ônibus dela atrasou. Veio algum pé de porco multar?

- Nem. Acho que eles colocaram uma jaqueta e preferiram ficar jogando Elifoot no prédio da polícia. Não vi um carro sequer passar por aqui.

- Viu - falando com a amiga - eu disse que era perigoso esperar aqui. O mínimo que poderíamos fazer era ficar esperando, né?

- Claro. O que vocês estão esperando para entrar?

- Não estou conseguindo puxar o banco para frente.

- Você está bêbado, pelo menos cinquenta por cento, se joga por aqui mesmo se o banco não levanta.

E o fez. Pisou no banco, pisou no freio de mão, pisou na perna do motorista e deu uma joelhada no peito do mesmo, bateu a cabeça no teto, no banco, no vidro (não se sabe como ou em qual deles) até que, de cabeça para baixo, conseguiu colocar todo o corpo no banco de trás sem perigo para os 'passageiros' da frente.

- Ahashcoeuqudou.

- O que?

Levantou a cabeça do banco.

- Acho que doeu um pouco.

- Acha?

- Só vai doer amanhã, quando o relaxante muscular da bebida passar.

- Ei, entra logo senão você vai ficar com frio aí. - disse para amiga.

Sem dizer nada, ela entrou e fechou a porta. Ele, que havia tentado não olhar para ela, por vários motivos, decidiu que seria educado ao menos se apresentar. Ela, por algum motivo que só em histórias parece existir, pensou a mesma coisa ao mesmo tempo.

- Oi, eu sou o...

- Oi, eu sou a...

Um silêncio de cemitério se fez presente até que o outro, lá do banco de trás, resolveu quebrá-lo.

- Vocês já se conhecem muito, chega de frescura.

Ele e ela pareceram não ter ouvido. Ou ouviram e não deram bola. Depois de tanto tempo, depois de tantos desentendimentos, estavam ali, um do lado do outro, como tantas vezes já haviam estado.

- Tudo bem?

- Tudo, e você?

- Normal.

- Como sempre.

- Por aí.

Não havia muita coragem no momento para dar sequência a um diálogo. Até que a voz do fundo do carro disse:

- Vamos logo, acho que preciso cagar.

Clima? Que clima?

Ligou o carro e saíram.

- Não esquece de me guiar, não sei direito como chegar na sua casa.

- Deixa pra mim.

Andaram um pouco até que ela, como mulher, não conseguiu mais lidar com o silêncio.

- Não esperava encontrar você aqui.

- Digo o mesmo. Quando ele me disse que íamos buscar uma amiga sua, achei que era uma... um casinho dele.

- Você ainda sai por aí pegando qualquer vadia?

O outro levantou a cabeça, quase não conseguindo segurá-la, só para dizer:

- Dobra a próxima na esquerda e dobra à direita no terceiro posto Ipiranga que aparecer. E sim, qualquer uma que não se espante com a minha barba e tenha bom gosto para querer ouvir um punk rock.

- Uma vadia com bom gosto, nunca achei que isso fosse ser padrão de escolha.

Os dois da frente riram. O de trás parecia não estar ali.

- Não que seja da minha conta mas o que você veio fazer aqui? Algum congresso ou show?

- Isso. Tem um congresso de nanotecnologias aplicadas à minha área, vai ser bom para o meu tcc ver isso. E você?

- Estou fazendo mestrado aqui. Aí o esponja ali atrás me convidou para vir num bar...

- Pub, era um pub seu colono!

- Hahaha, que seja, um pub. Não saio muito, ainda mais agora que eu tenho que estudar bastante e não tenho companhia para sair.

- Não está mais namorando?

- Não não, deu o que tinha que dar, até mais do que isso.

- Ela era mandona e queria que ele ouvisse axé na marra. - resmungou o amigo.

Ela, olhando para ele enquanto dirigia, limitou-se, naquele momento, a um:

- Axé é dose.

Ele queria perguntar como estava o namoro dela. 'Mas por que?', pensou, havia, naquele instante ressuscitado a velha paixão de quatro anos atrás? Não, não. Que bobagem. Coisa de mirim.

- Eu também estou solteira agora - disse ela, parecendo envergonhada - e acho que foi pelo mesmo motivo.

- Ele queria te fazer ouvir axé?

- Não, eu queria fazer ele ouvir Avenged Sevenfold.

- Tirana! Se ainda fosse Ramones ou Attaque 77 - resmungou, mais uma vez, o amigo, dessa vez com a cabeça para cima, escorado no banco.

Os dois riram.

- Sinceramente, não conheço essa banda que você falou, eu acho. Não tenho ouvido muita música ultimamente, só uns...

- Who's e Kinks, não?

- O que é clássico será sempre clássico.

Riram.

Ele continou.

- Mas eu sei que você não gosta de coisas velhas. Por isso nem vou continuar com o assunto.

- É bom conhecer coisas... novas?

Riram. Era bom poder conversar como se nada tivesse acontecido. Como se não houvesse mágoa ou decepção, tristeza ou remorso, lembranças ruins e dolorosas. Era bom apenas conversar... com ela.... com ele. Não importava se nunca mais viessem a se ver, ou conversar. A 'última noite' juntos teria sido aquela em que conversaram agradavelmente enquanto um outro amigo, de ambos, resmungava, bêbado. Ela fazia falta na vida dele. Ele fazia falta na vida dela. Não admitiram isso até porque nem tocaram no assunto.

Estava feliz por ter dado um jeito de convidá-lo para sair bem na noite em que me comprometi a buscá-la na rodoviária. Não lembro sobre o que eles conversaram, até porque, bebi tanto naquela noite que conseguir resmungar algumas coisas, que os fizeram rir juntos como há tempos não acontecia, era o máximo que eu, do banco de trás, conseguia fazer.

Não sei se chegamos em casa diretamente, se ele ouviu meus resmungos cheios de álcool e sono. Não sei se não demos voltas e voltas até chegar, se ele não usou o GPS ou ligou para a minha mãe para saber onde morávamos. Não sei se não andamos para lá e para cá só para que eles conversassem mais. Não sei. Não lembro.

De hoje, faz duas semanas que isso aconteceu. Não falei com ele e nem com ela. Não sei como estão. Se voltaram a conversar. Não sei mesmo.

A única coisa que eu sei, de verdade, é que essa noite vou me encontrar com a baixinha que estava com a camisa do Iron Maiden em um pub que tem Bud à volonté.