segunda-feira, 24 de março de 2014

Histórias de uma vida não vivida (60)


*Eis que o imaginário toma à mente em meio à necessidade de pensamentos que visam um futuro melhor. O nada de um passado distante toma forma de um pedaço de vida que poderia estar sendo vivido se os acasos virassem de lado, pela força do vento ou do arrependimento. As decisões irrevogáveis, da impetuosa imaturidade, deram a entender que não havia nada em algum lugar, por algum motivo, e, nesse ponto, parece que tudo ruiu. Não saber lidar com a nova realidade antecipou um fim que talvez - e apenas talvez - viesse a ser impossível, naturalmente por ser inimaginável. A distância, do passado, da imaturidade, das escolhas e do arrependimento - sim, isso também desaparece como bolhas de um efervescente - deixa ele, o passado, um tanto agradável de ser lembrado. Como se não houvesse tristeza ou motivos para arrependimento. A tristeza, no entanto, vem pelo presente. Não pelo que se tem, ou pelo que poderia ter-se caso aquela imaturidade não tivesse jogado tudo para um plano desnecessário, mas, sim, pela certeza de que mesmo que a realidade não trouxesse o imaginável, seria muito melhor se não tivesse carregado consigo, para esse presente, o inimaginável.

- Ah, Mone, dia desses encontrei o Góga no supermercado.

- Sério? Nunca mais vi ele, Marco.

- Ainda bem, né?

- Claro!

- Quem é Góga?

Marco olhou para Mone como quem pergunta 'você nunca falou para ele?' ao mesmo tempo em que ela olhou-o querendo dizer 'agora que falou bobagem, conserta'.

- Bom, Cacá, anos atrás uma dupla de irmãos começou a participar do grupo conosco. Eles vinham de... sei lá onde. O mais velho, o Jota, se enturmou porque começou a jogar futebol conosco. Mas o mais novo, o Gorgel, vulgo Góga, não jogava futebol, logo não se enturmou.

- Na verdade não foi só por não jogar bola né, Marco.

- Claro. As meninas do grupo começaram a ser atacadas...

- O QUE AMOR, VOCÊ FOI ATACADA POR ELE?

- Calma. Atacadas verbalmente. O cara era uma metralhadora de cantadas de pedreiro.

- AH. - Cacá respirou aliviado e resvalou um pouco na cadeira - Tá, continua.

- Pois é. Como as gurias eram bem amigas, foi só uma contar que ele tinha dito que ela 'tinha os olhos mais bonitos que ele já tinha visto', dentre outros elogios desse naipe, que elas foram podando ele violentamente.

- E você era uma dessas amor?

- Não, eu não podei ele.

- Como?

- Conta, Marco.

- Claro. A Mone não podou porque ela, assim como a Micha, eram educadas demais e se deram conta que ele só era uma metralhadora porque era carente e precisava de atenção. Mas não pense bobagem, Cacá.

- Hum.

- É, e daí ele ficava metralhando as duas até descobrir que a Micha tinha namorado, e que ele era um pouco ciumento. Então sobrou só a Mone para ser alvo da metralhadora dele.

- Fora as outras, de fora do grupo, que fomos descobrir só depois.

- Exato. O cara atirava de tudo quanto é jeito e se fazia, ainda mais, de coitado quanto a Mone ameaçava parar de falar com ele. Ele dizia 'por que você não quer ficar comigo se eu te amo tanto?' e coisas ainda mais...

- Embaraçosas.

- Pode ser. E foi assim até que...

- Você foi grossa com ele?

- Não.

- Não. Foi assim até que eu dei umas cortadas nele. Conversei várias vezes com ele sobre isso, que se a Mone não queria ficar com ele era para ele deixá-la em paz... essas coisas. No começou não adiantou mas quando eu subi o tom, falei com voz grossa, sem dar chances para ele retrucar ou argumentar é que ele parou de incomodar a Mone.

- Foi uma das melhores coisas que você já fez por mim.

- Por que você, especificamente VOCÊ, fez isso?

- Como?

- Vocês não eram em vários? Por que só você chegou e conversou com ele? Por que só você deu uma dura nele?

- Não entendi a pergunta mas... acho que eu era o que mais tinha condições de afastá-lo sem excluí-lo. Até porque mais de uma vez ele foi jantar conosco lá em casa. Questão de educação. Os outros guris, provavelmente, se soubessem, iriam xingá-lo valendo. Não é certo fazer isso com uma pessoa que tem problemas.

- Só você sabia? Por que você contou só para ele Mone?

- Não sei. Éramos melhores amigos na época, não guardávamos segredos.

- Até hoje, pelo que eu sei.

- Vai com calma, Cacá, não vai pensar bobagem.

- Então por que você, Marco, é que tomou as dores da Mone?

- Você não faria isso por uma amiga sua?

- Claro.

- Então? Fiz porque ela era minha amiga. Porque era uma pessoa importante para mim. Porque alguém precisava fazer. E porque era o correto a fazer.

- Hum, tá.

- Por que mais seria?

- Porque você gostava dela e não queria que ninguém chegasse perto.

Marco caiu na gargalhada. Mone, no princípio, ficou apavorada com a pergunta de Cacá mas, vendo que ele ainda não havia olhado-a, resolveu rir também.

- Amor, para com isso. Somos só amigos.

- Sempre fomos só amigos, Cacá. Não procura minhoca porque essa terra é pedra.

Mone riu.

- O que? Não entendi.

- Deixa pra lá, não é nada demais.

- Tudo bem.

Marco mudou o rumo da conversa. Ou será que foi Mone? Conversaram, jantaram, caminharam e, enquanto Cacá buscava o carro, Mone e Marco então conversaram.

- Obrigado.

- Pelo que, Mone?

- Por ter feito o que fez.

Marco riu.

- O que eu fiz, Mone?

- Você sempre diz que não fez nada. Que não faz nada. Mas continua fazendo.

- Não sei do que você está falando.

- Você não falou por que, de fato, tirou o xarope do Góga do meu pé.

- Claro que falei.

- Marco...

- Certo, falei quase tudo. Melhor assim?

- Sim.

- Algo mais?

- Você sabe que sim. Poderia ter contado tudo.

- Tudo o que? Que eu mordia os beiços de ciúmes toda vez que um cara, que não fosse meu amigo e desinteressado em você, estivesse conversando com você? Que o Góga foi só mais um dessa lista de idiotas que tentaram se aproximar de você e eu, de algum jeito, afastei? Que eu sempre estive do seu lado porque te amava?

- É. E o resto. Não gosto de esconder isso do Cacá mas acho que a nossa amizade depende disso.

- Concordo. Até porque, acho que você não está escondendo nada dele. Eu te amava, éramos melhores amigos, estávamos sempre juntos. Só isso.

- Não é bem assim.

- O acaso, o bom Deus ou as ironias da vida. Tanto faz, tanto fez o que quer que tenha impedido... enfim. Sabe, gosto do Cacá. Trabalhador, honesto, simples. E o que ele me disse, naquele tom de brabeza, prova que ele gosta mesmo de você. Fico em paz sabendo que você está bem.

- Que bom, obrigado. E obrigado de novo.

- Por que, agora?

- Acho que nunca tinha te agradecido pelo chega pra lá o Góga. Haha, ele era muuuuuito chato.

- De nada.

Cacá estacionou, abriu o vidro e falou: 

- Vamos, amor. Quer uma carona, Marco?

- Não, Cacá, valeu. Gosto de ir caminhando.

- Certo, feito!

- Feito, boa noite.

- Boa noite, Marco.

- Boa noite, Mone.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Histórias de uma vida não vivida (59)


*Se pudesse voltar ao passado, voltaria? Acho que não. Talvez o presente, futuro naquele tempo, viesse a ser o mesmo. Não aguentaria toda aquela dor novamente. Os dias, as noites... tudo parecia igual. Se quisesse retratar isso em um quadro, pintaria toda a tela de preto e depois rasgaria, queimaria e não sei mais o que. De repente alguém vem, transforma o nada em tudo e não há mais espaço no rosto para sorrisos. De repente, alguém vem e transforma o tudo em nada, e não há mais lágrimas para chorar. Se pudesse voltar, não voltaria. O passado é dos mortos, daqueles que hoje descansam em paz - ou não. Deixe-os, os bons mortos, em paz. Deixe suas almas, que estavam ligadas a corpos humanos no passado, descansar no amor do Criador. Elas, as que estão com Ele, mereceram. O resto, o passado ruim, os causadores intencionais de dor e tristeza, esses tem a eternidade que merecem. Longe da paz. Longe da vida. Longe das lembranças sinceras. Longe da nostalgia sorridente. Longe do amor. Longe do Amor.

Estou em silêncio há dias. Nos julgamentos, mantive-me calado. O que poderia dizer? Que sou um criminoso por ter matado um ladrão, assassino e réu confesso que estava em liberdade apesar de tudo o que fez? Que o julgamento era injusto pois havia salvado a vida de uma pessoa? Que eu quis, sim, com todas as minhas forças matar aquele demônio que havia tirado a vida da mãe do meu filho? O que queriam que eu dissesse? Que estava feliz por ter sido obrigado a enfiar uma bala em um sujeito que nunca respeitou qualquer ser humano?

Nada falei. Fui condenado mas, por ser réu primário, minha pena foi reduzida. Justiça? Não levaram em conta o fato de ter salvado uma vida. Fora as centenas de pessoas que não serão roubadas, agredidas ou mortas por aquele indivíduo. Querem mesmo que eu diga alguma coisa? O mundo é um cocô. Sério, não tenho forças para dar a entonação necessária para que um palavrão vire xingamento e represente todos os sentimentos que passaram por mim desde o pior dia da minha vida.

Estávamos voltando para casa, há três anos atrás. Eu, minha esposa e nosso filho. Até que, em uma sinaleira, um indivíduo quebrou o vidro do meu carro, do lado da minha esposa, apontou uma arma para a cabeça dela e disse-me para passar todo o dinheiro. Instintivamente peguei e dei a ele todo o dinheiro que havia em minha carteira.

Há coisas que Deus, apenas Ele, é capaz de explicar. O que vem a seguir é uma delas.

Não sei mais o que aquele ladrão queria. Só queria que não atirasse em minha esposa ou filho. Foi então que, ao fundo, ouviu-se uma sirene. Simplificando, o demônio apertou o gatilho, matou minha esposa na frente do nosso filho e saiu correndo. De uma sirene. Que era o começo de um funk. Essa sujeira auditiva precisa ter um fim, alguém acabe com esse lixo, eu imploro.

Querem que eu diga mais o que?


Depois disso, mudamos de habitação. Fomos morar em um apartamento. Meu filho, com doze anos, começava a passar dias seguidos sem chorar. Isso dois anos e meio após a nossa tragédia. Ele estava recuperando-se daquele inferno. Eu também. Juntos, apoiando-nos um no outro e ambos na única saída que tínhamos, ou seja, a fé em um Deus que cuidaria de nossa amada esposa e mãe, e de nossas almas moribundas. Ambos fizemos tratamento diferente.

Ele frequentou uma psicóloga, começou três cursos de língua, aulas de violão e teclado e, claro, corridas matinais comigo. Precisava ocupar a cabeça. Isso funcionou. Eu entretanto precisei de algo para aliviar a raiva que sentia. Ora, por que será que eu sentia tanta raiva? Meu tratamento foi fazer aulas de tiro. Entrei para um clube de tiros e lá gastava mais munição do que todos os outros membros juntos.

A raiva era grande. E aos poucos foi esvaindo-se, juntamente com minha falta de precisão. Atirei tanto que, em um dia, acertei o ponto mais central do alvo de olhos fechados. Não é brincadeira. Minhas mãos tinham calos de tantos tiros disparados.

Até que esse segundo dia, o que originou minha prisão, aconteceu.

Como possuía porte de arma, andava sempre armado porque... vocês leram o que aconteceu comigo? Então. Feliz ou infelizmente, meu filho estava junto neste dia. Dobramos uma esquina na frente do nosso prédio e demos de cara... com ele. Aquele demônio miserável. Sim, aquela réstia de ser humano. O assassino da nossa felicidade, da melhor pessoa das nossas vidas.

Ele estava com uma faca apontando para uma mulher. Deveria ter, ela, uns trinta anos. Ou menos. Ela gritava que estava caminhando e não tinha nada de valor mas ele não acreditava e aproximava aquela faca (canivete, estilete, O RAIO QUE O PARTA) do pescoço dela.

Meu filho imediatamente congelou. Acho que a lembrança do que nos acontecera o paralisou. Estávamos longe e o desgraçado ainda não nos tinha visto.

- Pai, você está armado?

- Sim, filho.

- Então faça alguma coisa. Não deixa ele matar ela. Por favor.

Nessas horas o pai precisa virar um heroi. É necessidade do homem ser heroi do filho. Não era loucura e muito menos errado o que ele me pedia. Então eu o fiz atravessar a rua enquanto, andando por aquela rua mal iluminada (eu reconheceria aquele demônio maldito mesmo se ficasse cego, lembrava da voz, do rosto, do jeito de mexer o braço e do tique nervoso da mão esquerda), aproximei-me dele.

Ele me viu.

- Sai daqui cara, não é da tua conta rapá.

- É da minha conta sim, solta ela, verme maldito - incorporei um Vegeta, do Dragon Ball, talvez em homenagem ao meu filho.

Então ele a puxou para perto e a faca ficou a um centímetro, ou menos, do pescoço da mulher.

- Solta ela.

Saquei a arma.

- Sai daqui rapá, vou matar ela se você se aproximar.

A mulher parecia imóvel. Queria gritar mas não tinha forças. Estava chorando desesperadamente mas, em silêncio.

- Você não se lembra de mim, bandido?

- Quem é você rapá? Sai daqui senão depois dela eu te mato.

- Você já me matou há quase três anos quando assassinou minha esposa.

- Sai daqui, sai daqui!

Gritava prevendo o que aconteceria. Sua cabeça estava grudada na cabeça da mulher, a faca, um pouco mais para trás, estava em seu pescoço e não no dela. Estavam quase como se fossem um só. Ele desesperado, talvez por lembrar quem eu era, ou porque eu estava com uma arma ou, ainda, porque a polícia poderia estar vindo. Eu fui dando passos lentos, mirando com calma para a cabeça dele.

- Sai daqui, se manda cara, senão machuco essa loca aqui.

- Larga a faca, seu merda, larga essa droga de faca, agora!

- SAI DAQUI.

Então eu mirei, e atirei.

A mulher, enfim, gritou. Meu filho, do outro lado da rua, gritou. Não havia mais ninguém por perto. Pessoas começaram a sair na sacada do meu prédio para ver que barulho fora aquele. Eu atirei e acertei. A faca. Que, de tão próxima do pescoço dele, penetrou-o quase por inteiro.

Ele caiu. A mulher também.

Ela, no chão ainda, desesperadamente pegou o celular e ligou. Para casa, pois a ouvi dizendo 'venha para cá agora amor, RÁPIDO, eu... eu... vem para cá'. Ela falou mais porém não lembro. Ela estava salva. Meu filho estava salvo. O mundo estava salvo daquele bandido. Daquele demônio infeliz. Daquele miserável... faltam palavras.

Meus vizinhos foram chegando. Foram para perto da mulher. Ligaram para a polícia. Vieram dizer-me que testemunhariam a meu favor pois alguns haviam visto tudo, embora eu não os tivesse visto. Deram-me os parabéns por ter salvado uma pessoa. A mulher, depois de o marido, ou namorado, vir buscá-la, também veio agradecer-me. Ele, então, quase beijou meus pés em gratidão. Disse, eu, que não precisava agradecer. E não precisava mesmo.

Abracei meu filho e esperei a polícia chegar.

Levaram-me para a cadeia como um assassino. Julgaram-me e aquele júri composto por comunistas defensores de bandidos condenou-me. A família do bandido não teria mais o chefe provedor do sustento. Sim, sustento obtido em roubo, tráfico e assassinatos. Sim, eu sou o criminoso e ele era inocente. A melhor pessoa do mundo. Um assassino, ladrão, réu confesso e inocente. Livre.

Confio eu Deus. Acho que hoje aquele demônio está pagando seus pecados enquanto tem sua alma tostada no fogo do mais profundo inferno. A justiça Divina não falha, ao contrário da justiça dos homens.

Serei solto em algumas semanas. Farei trabalho comunitário - como fiz durante anos com minha esposa - para reparar a sociedade do mal que fiz a ela livrando-a de assassinatos e roubos de um criminoso doente. Ouvi que a culpa é do sistema, do capitalismo, da marginalização de sei lá o que. Ouvi tanta bobagem que preferi ficar calado. Aceitar o que ouvia calado. Culpa do sistema, disso e daquilo. Bobagem. A pessoa escolhe se quer ser honesta ou não. Se quer roubar ou não. Se quer matar um semelhante ou não. Nada justifica.

Nada.

Discurso de direitos humanos, para mim, é discurso de direito dos bandidos, dos demônios que tiram dos cidadãos de bem a paz, a tranquilidade, a segurança para caminhar na rua sem medo de perder o que foi comprado com trabalho ou conquistado com amor.

Não sou mais um cidadão de bem. Sou um assassino que salvou a vida de alguém. E vingou, inesperadamente, a vida do melhor alguém que já conheci. Depois disso, meu filho me acha um heroi. Pintou um quadro com as mesmas tintas que sua mãe usava e lá estava uma cruz, uma pomba branca e uma estrada. Você não precisa entender direito. Talvez nem eu consiga fazê-lo. As pessoas mandam-me cartas. Entregam-nas para meu filho. Passei a ser um heroi para muitas pessoas. A mulher que salvei... é, salvei, está cuidando do meu guri enquanto estou preso. Eu disse que não precisava, que os vizinhos poderiam fazê-lo mas ela fez questão. Sou heroi para ela também

Um heroi não reconhecido por quem faz a notícia. Muito menos por quem continua achando que assassinos e ladrões são meros escravos do capitalismo repressor.

Ele a matou e a morte dela não significou nada. Ela era mãe, esposa, professora e pintora, conquistava todos a volta com trabalho, dedicação e amor. Devia ela ser um nada mesmo, apesar de ser tudo para mim e nosso filho. Ele, morto, foi inocentado de todos os crimes, morreu como símbolo de uma sociedade oprimida e injusta.

Querem que eu diga o que? Que estou feliz por tê-lo matado? Não. Não estou.

O que não posso fazer, no entanto, é negar que, agora, estou em paz. Estamos em paz.

Eu, ainda, estou em silêncio.

terça-feira, 11 de março de 2014

Pedaços de um pensamento (81)

Ouvi de alguém, talvez minha mãe, talvez uma professora do fundamental, talvez li de um escritor de auto ajuda, não sei ao certo, que poderia ser o que quisesse.

Essa frase, louvável no sentido motivacional e utópica e banal na realidade, não passa de escassas palavras no meio do furacão. Não que não devam ser ditas, não que sejam ofensivas ou destruam a vida de alguém mas... não é assim que as coisas acontecem, não é dessa forma que a vida é.

Jesus, em Mateus 7,7 , nos diz que 'Pedi e vos será dado'. O problema não é acreditar nessa frase. É real. O porém está na interpretação do como isso acontece. Querer não é poder. Nem tudo que peço me será dado porque nem tudo - na verdade, quase nada - do que peço me é necessário. E, conclui-se com naturalidade, que nem tudo o que busco ou almejo alcançarei. Por uma razão simples:

Não somos nada.

A gigantesca e impensável quantidade de condicionais que surgem a cada dia em nossas vidas muda, quase que a cada instante, nosso pensado, planejado ou imaginado futuro. Tudo é muito incerto porque a vida, em si, é uma incerteza enganadora. Quando parece que vai subir, cai. Quando achamos que vamos voar, cortam nossas asas - algumas vezes no sentido literal. Quando achamos que estamos no fundo do poço somos catapultados para uma alegria sem igual.

Não posso ser tudo o que quero ser. Nunca pude ser tudo o que queria ser. De jogador de futebol a bombeiro, de policial a piloto de avião. Tudo isso - e o resto - foi-me tirado a cada escolha que fiz. Nunca me faltou apoio ou empenho mas, sinceramente, hoje nada disso faria muito sentido. Nem o que hoje está encaminhado parece fazer muito sentido, que dirá as imaginações falhas do passado.

Deixo de computar, justificando pelos condicionais anteriormente citados, essas mudanças de planos ou sonhos como se fossem fracassos. Nem insanamente seria justo para comigo considerar que fracassei em todos os meus sonhos (até hoje), embora isso não deixe de ser uma clara e verdadeira consequência deles, os condicionantes diários.

Eles levam a culpa por tudo dar errado? Também não é assim.

Diretamente no importante, acreditar cegamente que tudo o que se quer é possível ter é entrar em um tiroteio sem colete à prova de balas. A chance de cair um tombo, dois ou duzentos, é grande. Achar que o mundo está aos pés - e dizer que tudo o que se quer ser é possível ser é, sim, achar que o mundo está inteiramente sob os próprios pés - é dos mais graves erros, uma vez que não há nada que garanta que, mesmo fazendo tudo o que é possível e contando com ajudas providenciais, é possível chegar exatamente onde se quer.

Os condicionais, os acasos e a simples existência de outras vidas, algumas com sonhos semelhantes ou iguais, acaba por tornar a hipotética conquista do querer uma hipocrisia egoísta.

Eu sim, os outros não.

Por que?

Errado, errado mesmo.

Creio num Deus que tem sonhos que ainda não consigo entender. Todas as improbabilidades e condicionais que mudaram meu passado, meu presente e que estão mudando a cada dia meu futuro, quero que converjam para onde Aquele que me criou quiser.

Lá estará minha felicidade, minha realização.

Lá estarei, sendo, não necessariamente o que quero mas, com certeza, tudo aquilo que preciso e posso ser.

O vazio de viver e só(48)

É possível que tudo aquilo que atormenta volte ao mesmo tempo?

Ao que parece, sim.

Eles, os terrores, resolveram voltar juntos, de uma só vez. Lentamente vieram e deram de cara comigo. Ou melhor, dei de cara com eles, elas, o que quer que sejam. Um medo de cair pairou sobre minha cabeça. A lembrança de tempos idos dificilmente melhora as situações no presente.

O passado, de modo geral, é uma tragédia à Shakespeare, ou uma doença à Espanhola - sendo que a morte, embora subjetiva, acabe sendo uma rotina.

Inclusive, não posso deixar de citar, elas, as lembranças, que tem sido um tanto cruéis durante meus raros pedaços de pensamento direito e objetivo. Tem sido consideravelmente difícil lidar com tantos terrores, ainda por cima, sendo vários simultaneamente.

A ideia de recomeço e transformação acaba sendo abafada por tantos fragmentos e mesmo sua junção e consequente compreensão do seu significado, no presente, acabam esvaindo-se.

Bem como o sentido deste fragmento desaparece em si.

Ainda que o resto não seja visível

terça-feira, 4 de março de 2014

O vazio de viver e só (47)

Ainda que a vida fosse mesmo, como algum poeta do tempo ido escreveu ou cantou, uma grande desilusão, não faria muito sentido escolher viver nela mesma apenas por isso. Talvez, se a vida não deixasse de ser uma ilusão, tivéssemos pessoas menos preocupadas com futilidades e banalidades escrotas, que afastam do que lhes é fundamental e intransferível.

Sendo uma ilusão, a vida seria cheia de beijos e abraços, de palavras suaves e gestos carinhosos, de olhares ternos e músicas que dariam significado aos movimentos - nada aleatórias e desconexas como o são atualmente. A ilusão seria doce por ter viventes alienados, desconectados do mundo lá fora. Sim, porque Deus nos livre de um mundo inteiro de ilusão. Mas a ilusão, dentro da realidade, é possível. Basta deixar de achar que os problemas do mundo são os nossos problemas, que os problemas dos outros são nossos problemas e, sem dúvida, que os nossos problemas são nossos problemas.

Problemas para que?

Viver iludido em um mundo ilusório, dentro do mundo real, seria interessante. Inegável isso. Fantasiar com uma vida que não se tem não é rejeitar a que se tem e sim achar que tudo poderia ser diferente. E tudo pode ser diferente sem ter aquele tom de auto ajuda que insistem em jogar-nos goela abaixo com livros, palestras e vídeos motivacionais.

Seria tão simples ignorar que há pessoas que passam fome, pessoas que são assaltadas, agredidas e mortas, pessoas que passam frio ou vivem em meio a uma guerra. Tão simples, também, esquecer dos problemas mais próximos, como a inveja, a falta de caridade, de compreensão, viver como se não houvesse preocupação alguma com o dinheiro, com como consegui-lo e como evitar que tudo não passe de um grade caos.

Tudo desconexo não por acaso. A ilusão, em si, é desconexa, é imaginária, é meramente para alienados e, feliz ou infelizmente, não por muito tempo.

Ninguém nos mandou viver em um mundo onde os problemas do mundo são nossos problemas. Onde o nosso grão de areia pode fazer a diferença. Continuar com isso seria copiar qualquer livro banal publicado com o intuito, ilusório, de ajudar.

As minhas palavras não podem ajudar alguém. 

Ao menos hoje, não.