quarta-feira, 12 de março de 2014

Histórias de uma vida não vivida (59)


*Se pudesse voltar ao passado, voltaria? Acho que não. Talvez o presente, futuro naquele tempo, viesse a ser o mesmo. Não aguentaria toda aquela dor novamente. Os dias, as noites... tudo parecia igual. Se quisesse retratar isso em um quadro, pintaria toda a tela de preto e depois rasgaria, queimaria e não sei mais o que. De repente alguém vem, transforma o nada em tudo e não há mais espaço no rosto para sorrisos. De repente, alguém vem e transforma o tudo em nada, e não há mais lágrimas para chorar. Se pudesse voltar, não voltaria. O passado é dos mortos, daqueles que hoje descansam em paz - ou não. Deixe-os, os bons mortos, em paz. Deixe suas almas, que estavam ligadas a corpos humanos no passado, descansar no amor do Criador. Elas, as que estão com Ele, mereceram. O resto, o passado ruim, os causadores intencionais de dor e tristeza, esses tem a eternidade que merecem. Longe da paz. Longe da vida. Longe das lembranças sinceras. Longe da nostalgia sorridente. Longe do amor. Longe do Amor.

Estou em silêncio há dias. Nos julgamentos, mantive-me calado. O que poderia dizer? Que sou um criminoso por ter matado um ladrão, assassino e réu confesso que estava em liberdade apesar de tudo o que fez? Que o julgamento era injusto pois havia salvado a vida de uma pessoa? Que eu quis, sim, com todas as minhas forças matar aquele demônio que havia tirado a vida da mãe do meu filho? O que queriam que eu dissesse? Que estava feliz por ter sido obrigado a enfiar uma bala em um sujeito que nunca respeitou qualquer ser humano?

Nada falei. Fui condenado mas, por ser réu primário, minha pena foi reduzida. Justiça? Não levaram em conta o fato de ter salvado uma vida. Fora as centenas de pessoas que não serão roubadas, agredidas ou mortas por aquele indivíduo. Querem mesmo que eu diga alguma coisa? O mundo é um cocô. Sério, não tenho forças para dar a entonação necessária para que um palavrão vire xingamento e represente todos os sentimentos que passaram por mim desde o pior dia da minha vida.

Estávamos voltando para casa, há três anos atrás. Eu, minha esposa e nosso filho. Até que, em uma sinaleira, um indivíduo quebrou o vidro do meu carro, do lado da minha esposa, apontou uma arma para a cabeça dela e disse-me para passar todo o dinheiro. Instintivamente peguei e dei a ele todo o dinheiro que havia em minha carteira.

Há coisas que Deus, apenas Ele, é capaz de explicar. O que vem a seguir é uma delas.

Não sei mais o que aquele ladrão queria. Só queria que não atirasse em minha esposa ou filho. Foi então que, ao fundo, ouviu-se uma sirene. Simplificando, o demônio apertou o gatilho, matou minha esposa na frente do nosso filho e saiu correndo. De uma sirene. Que era o começo de um funk. Essa sujeira auditiva precisa ter um fim, alguém acabe com esse lixo, eu imploro.

Querem que eu diga mais o que?


Depois disso, mudamos de habitação. Fomos morar em um apartamento. Meu filho, com doze anos, começava a passar dias seguidos sem chorar. Isso dois anos e meio após a nossa tragédia. Ele estava recuperando-se daquele inferno. Eu também. Juntos, apoiando-nos um no outro e ambos na única saída que tínhamos, ou seja, a fé em um Deus que cuidaria de nossa amada esposa e mãe, e de nossas almas moribundas. Ambos fizemos tratamento diferente.

Ele frequentou uma psicóloga, começou três cursos de língua, aulas de violão e teclado e, claro, corridas matinais comigo. Precisava ocupar a cabeça. Isso funcionou. Eu entretanto precisei de algo para aliviar a raiva que sentia. Ora, por que será que eu sentia tanta raiva? Meu tratamento foi fazer aulas de tiro. Entrei para um clube de tiros e lá gastava mais munição do que todos os outros membros juntos.

A raiva era grande. E aos poucos foi esvaindo-se, juntamente com minha falta de precisão. Atirei tanto que, em um dia, acertei o ponto mais central do alvo de olhos fechados. Não é brincadeira. Minhas mãos tinham calos de tantos tiros disparados.

Até que esse segundo dia, o que originou minha prisão, aconteceu.

Como possuía porte de arma, andava sempre armado porque... vocês leram o que aconteceu comigo? Então. Feliz ou infelizmente, meu filho estava junto neste dia. Dobramos uma esquina na frente do nosso prédio e demos de cara... com ele. Aquele demônio miserável. Sim, aquela réstia de ser humano. O assassino da nossa felicidade, da melhor pessoa das nossas vidas.

Ele estava com uma faca apontando para uma mulher. Deveria ter, ela, uns trinta anos. Ou menos. Ela gritava que estava caminhando e não tinha nada de valor mas ele não acreditava e aproximava aquela faca (canivete, estilete, O RAIO QUE O PARTA) do pescoço dela.

Meu filho imediatamente congelou. Acho que a lembrança do que nos acontecera o paralisou. Estávamos longe e o desgraçado ainda não nos tinha visto.

- Pai, você está armado?

- Sim, filho.

- Então faça alguma coisa. Não deixa ele matar ela. Por favor.

Nessas horas o pai precisa virar um heroi. É necessidade do homem ser heroi do filho. Não era loucura e muito menos errado o que ele me pedia. Então eu o fiz atravessar a rua enquanto, andando por aquela rua mal iluminada (eu reconheceria aquele demônio maldito mesmo se ficasse cego, lembrava da voz, do rosto, do jeito de mexer o braço e do tique nervoso da mão esquerda), aproximei-me dele.

Ele me viu.

- Sai daqui cara, não é da tua conta rapá.

- É da minha conta sim, solta ela, verme maldito - incorporei um Vegeta, do Dragon Ball, talvez em homenagem ao meu filho.

Então ele a puxou para perto e a faca ficou a um centímetro, ou menos, do pescoço da mulher.

- Solta ela.

Saquei a arma.

- Sai daqui rapá, vou matar ela se você se aproximar.

A mulher parecia imóvel. Queria gritar mas não tinha forças. Estava chorando desesperadamente mas, em silêncio.

- Você não se lembra de mim, bandido?

- Quem é você rapá? Sai daqui senão depois dela eu te mato.

- Você já me matou há quase três anos quando assassinou minha esposa.

- Sai daqui, sai daqui!

Gritava prevendo o que aconteceria. Sua cabeça estava grudada na cabeça da mulher, a faca, um pouco mais para trás, estava em seu pescoço e não no dela. Estavam quase como se fossem um só. Ele desesperado, talvez por lembrar quem eu era, ou porque eu estava com uma arma ou, ainda, porque a polícia poderia estar vindo. Eu fui dando passos lentos, mirando com calma para a cabeça dele.

- Sai daqui, se manda cara, senão machuco essa loca aqui.

- Larga a faca, seu merda, larga essa droga de faca, agora!

- SAI DAQUI.

Então eu mirei, e atirei.

A mulher, enfim, gritou. Meu filho, do outro lado da rua, gritou. Não havia mais ninguém por perto. Pessoas começaram a sair na sacada do meu prédio para ver que barulho fora aquele. Eu atirei e acertei. A faca. Que, de tão próxima do pescoço dele, penetrou-o quase por inteiro.

Ele caiu. A mulher também.

Ela, no chão ainda, desesperadamente pegou o celular e ligou. Para casa, pois a ouvi dizendo 'venha para cá agora amor, RÁPIDO, eu... eu... vem para cá'. Ela falou mais porém não lembro. Ela estava salva. Meu filho estava salvo. O mundo estava salvo daquele bandido. Daquele demônio infeliz. Daquele miserável... faltam palavras.

Meus vizinhos foram chegando. Foram para perto da mulher. Ligaram para a polícia. Vieram dizer-me que testemunhariam a meu favor pois alguns haviam visto tudo, embora eu não os tivesse visto. Deram-me os parabéns por ter salvado uma pessoa. A mulher, depois de o marido, ou namorado, vir buscá-la, também veio agradecer-me. Ele, então, quase beijou meus pés em gratidão. Disse, eu, que não precisava agradecer. E não precisava mesmo.

Abracei meu filho e esperei a polícia chegar.

Levaram-me para a cadeia como um assassino. Julgaram-me e aquele júri composto por comunistas defensores de bandidos condenou-me. A família do bandido não teria mais o chefe provedor do sustento. Sim, sustento obtido em roubo, tráfico e assassinatos. Sim, eu sou o criminoso e ele era inocente. A melhor pessoa do mundo. Um assassino, ladrão, réu confesso e inocente. Livre.

Confio eu Deus. Acho que hoje aquele demônio está pagando seus pecados enquanto tem sua alma tostada no fogo do mais profundo inferno. A justiça Divina não falha, ao contrário da justiça dos homens.

Serei solto em algumas semanas. Farei trabalho comunitário - como fiz durante anos com minha esposa - para reparar a sociedade do mal que fiz a ela livrando-a de assassinatos e roubos de um criminoso doente. Ouvi que a culpa é do sistema, do capitalismo, da marginalização de sei lá o que. Ouvi tanta bobagem que preferi ficar calado. Aceitar o que ouvia calado. Culpa do sistema, disso e daquilo. Bobagem. A pessoa escolhe se quer ser honesta ou não. Se quer roubar ou não. Se quer matar um semelhante ou não. Nada justifica.

Nada.

Discurso de direitos humanos, para mim, é discurso de direito dos bandidos, dos demônios que tiram dos cidadãos de bem a paz, a tranquilidade, a segurança para caminhar na rua sem medo de perder o que foi comprado com trabalho ou conquistado com amor.

Não sou mais um cidadão de bem. Sou um assassino que salvou a vida de alguém. E vingou, inesperadamente, a vida do melhor alguém que já conheci. Depois disso, meu filho me acha um heroi. Pintou um quadro com as mesmas tintas que sua mãe usava e lá estava uma cruz, uma pomba branca e uma estrada. Você não precisa entender direito. Talvez nem eu consiga fazê-lo. As pessoas mandam-me cartas. Entregam-nas para meu filho. Passei a ser um heroi para muitas pessoas. A mulher que salvei... é, salvei, está cuidando do meu guri enquanto estou preso. Eu disse que não precisava, que os vizinhos poderiam fazê-lo mas ela fez questão. Sou heroi para ela também

Um heroi não reconhecido por quem faz a notícia. Muito menos por quem continua achando que assassinos e ladrões são meros escravos do capitalismo repressor.

Ele a matou e a morte dela não significou nada. Ela era mãe, esposa, professora e pintora, conquistava todos a volta com trabalho, dedicação e amor. Devia ela ser um nada mesmo, apesar de ser tudo para mim e nosso filho. Ele, morto, foi inocentado de todos os crimes, morreu como símbolo de uma sociedade oprimida e injusta.

Querem que eu diga o que? Que estou feliz por tê-lo matado? Não. Não estou.

O que não posso fazer, no entanto, é negar que, agora, estou em paz. Estamos em paz.

Eu, ainda, estou em silêncio.

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