segunda-feira, 24 de março de 2014

Histórias de uma vida não vivida (60)


*Eis que o imaginário toma à mente em meio à necessidade de pensamentos que visam um futuro melhor. O nada de um passado distante toma forma de um pedaço de vida que poderia estar sendo vivido se os acasos virassem de lado, pela força do vento ou do arrependimento. As decisões irrevogáveis, da impetuosa imaturidade, deram a entender que não havia nada em algum lugar, por algum motivo, e, nesse ponto, parece que tudo ruiu. Não saber lidar com a nova realidade antecipou um fim que talvez - e apenas talvez - viesse a ser impossível, naturalmente por ser inimaginável. A distância, do passado, da imaturidade, das escolhas e do arrependimento - sim, isso também desaparece como bolhas de um efervescente - deixa ele, o passado, um tanto agradável de ser lembrado. Como se não houvesse tristeza ou motivos para arrependimento. A tristeza, no entanto, vem pelo presente. Não pelo que se tem, ou pelo que poderia ter-se caso aquela imaturidade não tivesse jogado tudo para um plano desnecessário, mas, sim, pela certeza de que mesmo que a realidade não trouxesse o imaginável, seria muito melhor se não tivesse carregado consigo, para esse presente, o inimaginável.

- Ah, Mone, dia desses encontrei o Góga no supermercado.

- Sério? Nunca mais vi ele, Marco.

- Ainda bem, né?

- Claro!

- Quem é Góga?

Marco olhou para Mone como quem pergunta 'você nunca falou para ele?' ao mesmo tempo em que ela olhou-o querendo dizer 'agora que falou bobagem, conserta'.

- Bom, Cacá, anos atrás uma dupla de irmãos começou a participar do grupo conosco. Eles vinham de... sei lá onde. O mais velho, o Jota, se enturmou porque começou a jogar futebol conosco. Mas o mais novo, o Gorgel, vulgo Góga, não jogava futebol, logo não se enturmou.

- Na verdade não foi só por não jogar bola né, Marco.

- Claro. As meninas do grupo começaram a ser atacadas...

- O QUE AMOR, VOCÊ FOI ATACADA POR ELE?

- Calma. Atacadas verbalmente. O cara era uma metralhadora de cantadas de pedreiro.

- AH. - Cacá respirou aliviado e resvalou um pouco na cadeira - Tá, continua.

- Pois é. Como as gurias eram bem amigas, foi só uma contar que ele tinha dito que ela 'tinha os olhos mais bonitos que ele já tinha visto', dentre outros elogios desse naipe, que elas foram podando ele violentamente.

- E você era uma dessas amor?

- Não, eu não podei ele.

- Como?

- Conta, Marco.

- Claro. A Mone não podou porque ela, assim como a Micha, eram educadas demais e se deram conta que ele só era uma metralhadora porque era carente e precisava de atenção. Mas não pense bobagem, Cacá.

- Hum.

- É, e daí ele ficava metralhando as duas até descobrir que a Micha tinha namorado, e que ele era um pouco ciumento. Então sobrou só a Mone para ser alvo da metralhadora dele.

- Fora as outras, de fora do grupo, que fomos descobrir só depois.

- Exato. O cara atirava de tudo quanto é jeito e se fazia, ainda mais, de coitado quanto a Mone ameaçava parar de falar com ele. Ele dizia 'por que você não quer ficar comigo se eu te amo tanto?' e coisas ainda mais...

- Embaraçosas.

- Pode ser. E foi assim até que...

- Você foi grossa com ele?

- Não.

- Não. Foi assim até que eu dei umas cortadas nele. Conversei várias vezes com ele sobre isso, que se a Mone não queria ficar com ele era para ele deixá-la em paz... essas coisas. No começou não adiantou mas quando eu subi o tom, falei com voz grossa, sem dar chances para ele retrucar ou argumentar é que ele parou de incomodar a Mone.

- Foi uma das melhores coisas que você já fez por mim.

- Por que você, especificamente VOCÊ, fez isso?

- Como?

- Vocês não eram em vários? Por que só você chegou e conversou com ele? Por que só você deu uma dura nele?

- Não entendi a pergunta mas... acho que eu era o que mais tinha condições de afastá-lo sem excluí-lo. Até porque mais de uma vez ele foi jantar conosco lá em casa. Questão de educação. Os outros guris, provavelmente, se soubessem, iriam xingá-lo valendo. Não é certo fazer isso com uma pessoa que tem problemas.

- Só você sabia? Por que você contou só para ele Mone?

- Não sei. Éramos melhores amigos na época, não guardávamos segredos.

- Até hoje, pelo que eu sei.

- Vai com calma, Cacá, não vai pensar bobagem.

- Então por que você, Marco, é que tomou as dores da Mone?

- Você não faria isso por uma amiga sua?

- Claro.

- Então? Fiz porque ela era minha amiga. Porque era uma pessoa importante para mim. Porque alguém precisava fazer. E porque era o correto a fazer.

- Hum, tá.

- Por que mais seria?

- Porque você gostava dela e não queria que ninguém chegasse perto.

Marco caiu na gargalhada. Mone, no princípio, ficou apavorada com a pergunta de Cacá mas, vendo que ele ainda não havia olhado-a, resolveu rir também.

- Amor, para com isso. Somos só amigos.

- Sempre fomos só amigos, Cacá. Não procura minhoca porque essa terra é pedra.

Mone riu.

- O que? Não entendi.

- Deixa pra lá, não é nada demais.

- Tudo bem.

Marco mudou o rumo da conversa. Ou será que foi Mone? Conversaram, jantaram, caminharam e, enquanto Cacá buscava o carro, Mone e Marco então conversaram.

- Obrigado.

- Pelo que, Mone?

- Por ter feito o que fez.

Marco riu.

- O que eu fiz, Mone?

- Você sempre diz que não fez nada. Que não faz nada. Mas continua fazendo.

- Não sei do que você está falando.

- Você não falou por que, de fato, tirou o xarope do Góga do meu pé.

- Claro que falei.

- Marco...

- Certo, falei quase tudo. Melhor assim?

- Sim.

- Algo mais?

- Você sabe que sim. Poderia ter contado tudo.

- Tudo o que? Que eu mordia os beiços de ciúmes toda vez que um cara, que não fosse meu amigo e desinteressado em você, estivesse conversando com você? Que o Góga foi só mais um dessa lista de idiotas que tentaram se aproximar de você e eu, de algum jeito, afastei? Que eu sempre estive do seu lado porque te amava?

- É. E o resto. Não gosto de esconder isso do Cacá mas acho que a nossa amizade depende disso.

- Concordo. Até porque, acho que você não está escondendo nada dele. Eu te amava, éramos melhores amigos, estávamos sempre juntos. Só isso.

- Não é bem assim.

- O acaso, o bom Deus ou as ironias da vida. Tanto faz, tanto fez o que quer que tenha impedido... enfim. Sabe, gosto do Cacá. Trabalhador, honesto, simples. E o que ele me disse, naquele tom de brabeza, prova que ele gosta mesmo de você. Fico em paz sabendo que você está bem.

- Que bom, obrigado. E obrigado de novo.

- Por que, agora?

- Acho que nunca tinha te agradecido pelo chega pra lá o Góga. Haha, ele era muuuuuito chato.

- De nada.

Cacá estacionou, abriu o vidro e falou: 

- Vamos, amor. Quer uma carona, Marco?

- Não, Cacá, valeu. Gosto de ir caminhando.

- Certo, feito!

- Feito, boa noite.

- Boa noite, Marco.

- Boa noite, Mone.

Nenhum comentário: