sexta-feira, 27 de junho de 2014

Histórias de uma vida não vivida (61)

*Se está mesmo tão distante, como pode parecer estar tão perto? A ilusão de um pensamento vago não é menor do que a de uma visão em dia cinza. A busca pelas respostas para aquela e quaisquer outras perguntas não afasta da realidade porém, em verdade, também não aproxima. Fugas e vindas, certezas e condicionais, tudo em um pensamento, em uma realidade, em uma vida. Aquilo que foge dos meus olhos não foge do pensamento mas por que, céus ou terras, o que foge do pensamento não foge dos olhos? De onde vem os brilhos que clareiam e permeiam essa noite, tão longa noite, que parece não ter fim? Por que razão a busca pela resposta de qualquer pergunta sobre esse interminável dia escuro é tão mais difícil do que, pura e simplesmente, encontrar em um par de olhos fechados - ou abertos, a escuridão pode ser amiga! - uma sensação distante que parece ser melhor do que a que está mais próxima?

- Você sabe, Marcos, que não vim aqui para ficar com alguém, certo?

- Sei, sei e sei. Mas aproveita a noite, se diverte, toma umas comigo e, enquanto eu estiver agarrado naquela baixinha com a camisa do Iron Maiden, você fica olhando para cima e pensando por que diabos não tem uma Bud sequer nesse bar no centro dessa capital.

- Por que a baixinha?

- Camisa do Iron. Ela é diferente. É única. Tem bom gosto.

- E um decote generoso, não?

- Ah, camisa de banda de rock rasgada para mostrar o decote. Viva as excêntricas! Morte ao modismo!

- Viva! Morte!

- Então, por que acabou?

- Não sei. Ela, eu, os dois. Era como se não falássemos mais a mesma língua. Como se olhássemos um para a Itália e o outro para o Japão. Sabe... não dá certo.

- Sei como é. Minha última namorada era...

- Parecida com a baixinha com camisa do Iron.

- Não. Bom, era. Mas não, para com isso. Ela era muito fã de umas coisas normais. E isso não serve pra mim.

- Sei.

- É, e daí ela queria me mudar, que eu gostasse das mesmas coisas e aquele troço ficou chato. Brigávamos todo dia. Ela 'sim' e eu 'não'. Ela 'agora' e eu 'nunca'. Ela 'mais' e eu 'menos.

- Exato. Por aí.

- E o que mais?

- Deixa pra lá, não quero falar sobre isso AGORA, entende?

- Certo. Então... qual é a próxima da lista?

- Que?

- A próxima. Em quem você vai investir? Porque nós dois sabemos que você não gosta de ser solteiro então... qual é a próxima?

- Hahaha, verdade, mas não tem lista, não tem próxima. Agora é hora de...

- Olhar para trás e voltar à primeira opção de sempre?

- Não começa.

- Ela era, e é, incrível. É diferente. É animada. Gosta de rock. Gosta de futebol. Gosta de ficar em casa e assistir filme. É perfeita para você!

- Não não. Ela namora. Não fala mais comigo desde que começou a namorar e... não sei, acho que não daria certo.

- Burro! Tongo! Lacaio! Mil vezes arcaide!

Continuaram ali, comendo polenta frita e azeitonas. O outro, entre uma cantada e outra na baixinha com a camisa do Iron Maiden, não parava de fazer descer pela goela uma(várias) Polar bem gelada, no capricho. Ele, olhava e ria dos tocos que o outro levava da baixinha, mantendo-se sóbrio porque, afinal, alguém precisava dirigir o carro.

- Gostou daqui?

- Muito legal. Música boa, não tem aquele fedor de fumaça, a polenta tá frita no capricho.

- Só faltava uma boa companhia, não?

- E você é o que? Acha que não é divertido ver aquela nanica ouvir suas cantadas in....falíveis e podar você sem dó? Você está sendo uma grande companhia!

- É é, haha, vai tirando onda.

Entre uma mordida e outra, uma roída no caroço de azeitona e outra, pensava em como havia parado ali. Óbvio que o amigo estava se comportando e sendo menos maloqueiro do que era. Essa não era a vida que ele queria mas, admitia, o ambiente era bom, a música era boa e, caramba, nunca havia comido uma polenta frita tão boa!

- Opa, duas da manhã, precisamos ir.

- Tá passando mal?

- Não não, mas não estou em condições de dirigir.

- Ah, sério?

- Haha, sério sim, seu irônico doente.

- Você não deu nem um beijo na baixinha e quer ir embora, desistiu ou o namorado dela, provavelmente um bombadinho, está chegando e você corre o risco de levar uma surra histórica?

- Nem um nem o outro. Para que você saiba que sou bom, peguei o telefone dela. Hoje não vai dar porque temos que buscar uma amiga minha na rodoviária.

- Não entendi. Você deu em cima da baixinha para treinar para a amiga que está chegando?

- Claro que não. Amiga é amiga. E eu só dou em cima das minhas amigas que não valem nada, daquelas que são amigas com aspas e circunflexo.

- Consegue fazer um quatro com as pernas?

- Duvido, acho mais fácil parir uma bigorna no vaso do que fazer isso. Acho que bebi bem hoje.

- É, mas não vá dormir porque não sei chegar na sua casa.

- Claro. Se acontecer, você entra em um motel e dormirmos lá.

Sim, ele era assim mesmo. E, mesmo sendo tão diferente, era um bom amigo. Excêntrico, bagaceiro, de um mundo diferente, com uma vida completamente diferente mas... um bom amigo.

Saíram. O outro o guiava pelas ruas. Direita, esquerda, reto, faz o retorno e tal e coisa até chegarem na rodoviária. O outro desceu.

- Já volto. Se o guarda vier multar, você sai, dá uma volta e volta no mesmo lugar.

- E se eu não me achar para voltar aqui?

- Bom, aí ferrou.

Foi. Demorou. Cinco, dez, quinze minutos. Nem um guarda. Nem o amigo. Nem uma amiga. Noite escura. Silenciosa. Nem parecia rodoviária de capital. E mais cinco, dez, quinze minutos. Até que ouviu uma batida no vidro. Era o amigo.

- Achei que não vinha mais.

- O ônibus dela atrasou. Veio algum pé de porco multar?

- Nem. Acho que eles colocaram uma jaqueta e preferiram ficar jogando Elifoot no prédio da polícia. Não vi um carro sequer passar por aqui.

- Viu - falando com a amiga - eu disse que era perigoso esperar aqui. O mínimo que poderíamos fazer era ficar esperando, né?

- Claro. O que vocês estão esperando para entrar?

- Não estou conseguindo puxar o banco para frente.

- Você está bêbado, pelo menos cinquenta por cento, se joga por aqui mesmo se o banco não levanta.

E o fez. Pisou no banco, pisou no freio de mão, pisou na perna do motorista e deu uma joelhada no peito do mesmo, bateu a cabeça no teto, no banco, no vidro (não se sabe como ou em qual deles) até que, de cabeça para baixo, conseguiu colocar todo o corpo no banco de trás sem perigo para os 'passageiros' da frente.

- Ahashcoeuqudou.

- O que?

Levantou a cabeça do banco.

- Acho que doeu um pouco.

- Acha?

- Só vai doer amanhã, quando o relaxante muscular da bebida passar.

- Ei, entra logo senão você vai ficar com frio aí. - disse para amiga.

Sem dizer nada, ela entrou e fechou a porta. Ele, que havia tentado não olhar para ela, por vários motivos, decidiu que seria educado ao menos se apresentar. Ela, por algum motivo que só em histórias parece existir, pensou a mesma coisa ao mesmo tempo.

- Oi, eu sou o...

- Oi, eu sou a...

Um silêncio de cemitério se fez presente até que o outro, lá do banco de trás, resolveu quebrá-lo.

- Vocês já se conhecem muito, chega de frescura.

Ele e ela pareceram não ter ouvido. Ou ouviram e não deram bola. Depois de tanto tempo, depois de tantos desentendimentos, estavam ali, um do lado do outro, como tantas vezes já haviam estado.

- Tudo bem?

- Tudo, e você?

- Normal.

- Como sempre.

- Por aí.

Não havia muita coragem no momento para dar sequência a um diálogo. Até que a voz do fundo do carro disse:

- Vamos logo, acho que preciso cagar.

Clima? Que clima?

Ligou o carro e saíram.

- Não esquece de me guiar, não sei direito como chegar na sua casa.

- Deixa pra mim.

Andaram um pouco até que ela, como mulher, não conseguiu mais lidar com o silêncio.

- Não esperava encontrar você aqui.

- Digo o mesmo. Quando ele me disse que íamos buscar uma amiga sua, achei que era uma... um casinho dele.

- Você ainda sai por aí pegando qualquer vadia?

O outro levantou a cabeça, quase não conseguindo segurá-la, só para dizer:

- Dobra a próxima na esquerda e dobra à direita no terceiro posto Ipiranga que aparecer. E sim, qualquer uma que não se espante com a minha barba e tenha bom gosto para querer ouvir um punk rock.

- Uma vadia com bom gosto, nunca achei que isso fosse ser padrão de escolha.

Os dois da frente riram. O de trás parecia não estar ali.

- Não que seja da minha conta mas o que você veio fazer aqui? Algum congresso ou show?

- Isso. Tem um congresso de nanotecnologias aplicadas à minha área, vai ser bom para o meu tcc ver isso. E você?

- Estou fazendo mestrado aqui. Aí o esponja ali atrás me convidou para vir num bar...

- Pub, era um pub seu colono!

- Hahaha, que seja, um pub. Não saio muito, ainda mais agora que eu tenho que estudar bastante e não tenho companhia para sair.

- Não está mais namorando?

- Não não, deu o que tinha que dar, até mais do que isso.

- Ela era mandona e queria que ele ouvisse axé na marra. - resmungou o amigo.

Ela, olhando para ele enquanto dirigia, limitou-se, naquele momento, a um:

- Axé é dose.

Ele queria perguntar como estava o namoro dela. 'Mas por que?', pensou, havia, naquele instante ressuscitado a velha paixão de quatro anos atrás? Não, não. Que bobagem. Coisa de mirim.

- Eu também estou solteira agora - disse ela, parecendo envergonhada - e acho que foi pelo mesmo motivo.

- Ele queria te fazer ouvir axé?

- Não, eu queria fazer ele ouvir Avenged Sevenfold.

- Tirana! Se ainda fosse Ramones ou Attaque 77 - resmungou, mais uma vez, o amigo, dessa vez com a cabeça para cima, escorado no banco.

Os dois riram.

- Sinceramente, não conheço essa banda que você falou, eu acho. Não tenho ouvido muita música ultimamente, só uns...

- Who's e Kinks, não?

- O que é clássico será sempre clássico.

Riram.

Ele continou.

- Mas eu sei que você não gosta de coisas velhas. Por isso nem vou continuar com o assunto.

- É bom conhecer coisas... novas?

Riram. Era bom poder conversar como se nada tivesse acontecido. Como se não houvesse mágoa ou decepção, tristeza ou remorso, lembranças ruins e dolorosas. Era bom apenas conversar... com ela.... com ele. Não importava se nunca mais viessem a se ver, ou conversar. A 'última noite' juntos teria sido aquela em que conversaram agradavelmente enquanto um outro amigo, de ambos, resmungava, bêbado. Ela fazia falta na vida dele. Ele fazia falta na vida dela. Não admitiram isso até porque nem tocaram no assunto.

Estava feliz por ter dado um jeito de convidá-lo para sair bem na noite em que me comprometi a buscá-la na rodoviária. Não lembro sobre o que eles conversaram, até porque, bebi tanto naquela noite que conseguir resmungar algumas coisas, que os fizeram rir juntos como há tempos não acontecia, era o máximo que eu, do banco de trás, conseguia fazer.

Não sei se chegamos em casa diretamente, se ele ouviu meus resmungos cheios de álcool e sono. Não sei se não demos voltas e voltas até chegar, se ele não usou o GPS ou ligou para a minha mãe para saber onde morávamos. Não sei se não andamos para lá e para cá só para que eles conversassem mais. Não sei. Não lembro.

De hoje, faz duas semanas que isso aconteceu. Não falei com ele e nem com ela. Não sei como estão. Se voltaram a conversar. Não sei mesmo.

A única coisa que eu sei, de verdade, é que essa noite vou me encontrar com a baixinha que estava com a camisa do Iron Maiden em um pub que tem Bud à volonté.

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