domingo, 26 de agosto de 2012

Histórias do Billi J. - O incompreensível e a inocência

Há alguns anos atrás, quando o Billi J tinha nove anos e estava na terceira série, aconteceu um fato que contribuiu muito para a decisão de reclusão tomada pelo Billi, alguns poucos anos depois. À partir daquilo, a visão dele sobre a amizade foi alterada bruscamente e a confiança nas outras pessoas também, mas de uma maneira ainda mais acentuada. Não era novidade que o Billi J. não tinha muitos amigos, aliás, nenhum dos seus colegas era seu amigo e, como todos sabem, o único motivo para ele não desistir daquela escola era... sim, a menina mais bonita da cidade, a sua primeira e grande paixão, ah, a Renata.

Por estudar, e circular pelos corredores da escola, sem companhia e sequer companheiros de conversas na hora da merenda, o Billi J. acostumou-se a conversar consigo mesmo. Por ser motivo de chacota de quase todos na escola, por apanhar dos colegas durante a educação física, mesmo que a atividade fosse individual - ou que ele não tivesse o domínio da bola durante o futebol, quando o mesmo era praticado - acostumou-se também a fortalecer-se a cada momento difícil que lhe era imposto. Sabia que eram apenas crianças, como ele, mas que ao contrário de si não eram crianças preocupadas com o que as outras, ou melhor, com o que ele achava de tudo aquilo. Ele era uma criança que não entendia porque as outras crianças o detestavam. Achava que era por causa dos óculos, do jeito tímido, porque estudava bastante ou porque, desde cedo, lia revistas de adultos.

Tanto faz.

O fato importante citado, e que acentuou a necessidade de afastamento do Billi J. das outras pessoas, aconteceu em uma semana de junho, antes do inverno começar. O Billi J., seguindo orientações da sua mãe, saiu de casa vestindo um moletom azul e, como de costume, rezando para que ninguém o notasse e que, ao menos naquele dia, não fosse alvo de piadas, gozações, ofensas ou mesmo agressões físicas - que muitas vezes incluíam tiro ao alvo com pedras, onde o alvo era ele.

Quando chegou na escola, viu seus colegas esperando-o na porta da sala de aula. Antevendo uma seção de tapas na cabeça, fingiu estar indo em direção ao bebedouro porém, seus colegas foram mais rápidos, o agarraram e cercaram-no, impedindo-o de fugir. Estranhamente, não o agrediram, sequer o xingaram. Billi J. olhava para eles perplexo, como alguém que diz 'vocês não vão fazer nada hoje?'. Por alguns instantes, eles riam baixo, uns com os outros, aumentando a perplexidade do momento para o Billi J. , até que um deles, Tiago, alemãozinho xarope e convencido, falou:

- Não se preocupe, filhinho da mamãe, hoje não vamos bater em você.

- Então me deixem ir para a sala. - respondeu um apavorado Billi J. .

- Não. Não vamos bater em você, nem vamos xingar você... mas você vai nos fazer um favor.

Era pior do que ser agredido, espancado e, na visão do Billi J. com nove anos, era pior do que ter seus braços cortados pelas espadas dos vilões dos Power Rangers. Fazer um favor para aqueles... bobos, era até pior do que ficar uma semana sem comer a torta de morango da mamãe.

- Prefiro que me batam, não quero ajudar vocês.

- Não seja idiota, não vai custar nada nos fazer esse favor. - respondeu Tiago. ( talvez a melhor frase fosse: "fazemos você de idiota todo o dia, xingamos você dos piores nomes que as crianças conhecem, batemos em você eventualmente e usamos você como alvo humano para treinarmos a nossa mira com pedras mas, apesar disso tudo, precisamos que você seja bom conosco e salve a nossa vida" )

- E depois, se nos ajudar, prometemos que não bateremos em você pelo resto do ano. - complementou Evandro, um baixinho metido a grande.

- Não acredito em vocês. E não imagino como posso ajudá-los.

- Primeiro, não fale como um adulto. Segundo, não vamos deixar de escorraçá-lo por nos ajudar.

- Então, o que eu ganho?

- Na verdade, é melhor você pensar no que não vai perder.

- E o que seria?

- Seus dentes.

Billi J. os olhou. Sabia que, da maneira que vinham treinando tiro ao alvo com pedras, logo seriam capazes de acertá-las nos seus dentes com uma precisão olímpica.

- Está bem, o que vocês querem?

- Não. Você não pode falar 'está bem'. Fale: tá bem! Fale!

Sentiu uma dor por mudar seu jeito de falar entretanto...

- Tá bem.

Dizer 'tá' em vez de 'está' foi triste, muito triste.

- Precisamos que você vá conosco para casa.

- E?

- E nada. É só ir conosco até o lugar onde vamos todos juntos, depois cada um vai para a sua casa, bobão.

- E por que?

- Não te interessa, quatro olhos. No final da aula, vamos esperar cinco minutos, se você não aparecer em cinco minutos, ficará banguela.

- Como você?

O Billi J. não tinha muita noção do perigo. Todos que estavam a sua volta riram, menos Tiago, que virou-se e foi para a sala de aula.

Durante os cinco períodos de aula, tentou concentrar-se no que os professores diziam, nas leituras e nos exercícios, mas o medo que sentia pelo que estava por vir era maior. O que fariam com ele? O matariam, o cortariam em pedaços e depois mandariam para sua mãe em uma caixa com os dizeres: "Ele se fez em mil pedaços, tia". Ou pior, podiam obrigá-lo a andar em uma bicicleta cor-de-rosa.

Ou a pior de todas as coisas: podiam fazê-lo sair correndo pela rua vestindo apenas a camisa do... Corinthians. "Do Corinthians não, jamais, prefiro morrer" - pensou. 

Naquele dia entendeu, pela primeira vez na vida, que nem sempre se pode fazer o melhor e que problemas pessoais podem interferir em todas as partes da vida. A grande vantagem de não se concentrar na aula era ter uma desculpa para ficar admirando, de longe, a Renata. Ah, e como ela era linda, e como seus cabelos balançavam com o vento que entrava pelas enormes janelas da sala de aula, e como ela era inteligente, sempre respondia o que o professor perguntava de maneira correta - ainda mais em matemática, pois corria o boato que ela sabia multiplicar números de dois dígitos, sem usar lápis e papel. Ah, Renata, talvez depois daquele dia não voltasse a vê-la.

Então aproveitou aqueles instantes de admiração da amada como se fossem os últimos.

O tempo passou, o momento chegou. Demorou e, entre uma e outra olhada disfarçada para a Renata, trocou a posição dos livros e cadernos na mochila umas doze vezes. Talvez aqueles bobos o deixassem em paz por não aguentarem esperar...

... não. Mesmo demorando um tantão, Billi J. deparou-se com aqueles... sim, esses mesmo, na saída da escola. Eles... sorriam... mas por quê, pensava o Billi J., desconhecendo toda e qualquer intenção por trás daquilo.

Sem mais delongas, uma vez que mamãe o esperava naquele dia com purê de batata e bife à milanesa para o almoço, foi o trajeto inteiro caminhando com seus colegas, sem entender nada daquilo em momento algum. Eles não falavam alguma palavra e a situação parecia cada vez mais ilógica, uma vez que... estava tão calmo, não apanhava, não era xingado... nada estava acontecendo, nenhuma degradação, agressão, intimidação, nada! Seria o começo de uma amizade?

Claro que não.

Chegando a um determinado ponto, percebeu que eles aceleraram o passo e, sem entender o porquê, foi arrastado junto com eles, para perto das meninas da turma, que estavam indo para casa em um grupo de cinco, também. Para piorar, entre elas estava... não... ela não... sim, a Renata. Temeu pelo que poderiam fazer com ela e até mesmo pela possibilidade de... eles não revelariam seu amor por Renata porque... ninguém sabia desse amor. Ah, Renata...

Foi quando o nada começou a parecer-se com o inferno. Aqueles bobos, um sardento, outro careca, outro com um risco de caneta na nuca, outro vestindo chinelo havaiana com um prego embaixo... aqueles bobos estavam... ãhn? O que eles estão fazendo?

Billi J. estava parado, bem próximo àquele grupo de crianças mas não entendia o que os seus colegas estavam querendo com suas colegas. Eles começaram a falar e... falar e... ãhn?

Eles queriam agarrá-las?!

Billi J. não sabia o que fazer e só pensava consigo: "A RENATA NÃO, A RENATA NÃO!", ainda que não demonstrasse isso. Estava parado com cara de lago em caverna sem reação. Não sabia o que fazer, o que dizer e, em hipótese alguma, no porquê estava ali, com eles. Eles tentavam aproximar-se e elas se afastavam, fugiam... claro, eles eram... eles eram... sei lá, me ajudem, digam alguma coisa! O Billi J. era só uma criança e... ele era uma criança menor que aqueles marginais que já haviam repetido de ano na escola.

O Billi J. não sabia o que dizer, como descrever, não conseguia entender e nem... nada. Digo, nem tudo. Digo, digo... Só conseguia pensar " NÃO CHEGUEM PERTO DA RENATA!" e logo desistia de colocar um 'senão' no final da frase por lembrar que não tinha porte físico nem conhecimento técnico para bater em alguém. Mas o grande motivo de não fazer nada é porque estava sedento por aquele bife da mamãe...

Ai ai.

Eles tentavam, elas se esquivavam. Eles tentavam beijá-las e elas, indiferentes, fugiam. A Renata foi esperta e saiu correndo, como se fosse chamar a Liga da Justiça - ou a Dona Florinda -, tranquilizando um Billi J. que olhou para o céu e rezou, bem baixinho "Obrigado, Deus, porque ninguém fez nada com a Renata".

Passos foram dados, aquela coisa estúpida foi acontecendo por quadras e quadras - com o Billi J. sendo puxado volta e meia por um ou outro bobo quando percebiam sua intenção de sair daquele... daquela confusão - até que... ah sim, agora a visão de inferno estava completa:

Os pais das meninas estavam vindo, conduzidos... pela Renata. Ah, Renata, como ela era linda, como seus cabelos balançavam com graça e simpatia... mesmo quando estava correndo para salvar meninas inocentes de meninos perturbados.

Quando viram os pais, eles todos saíram correndo. Todos, claro, menos o Billi J., que continuava perplexo, sem saber o que fazer, falar e sequer entender o que tinha acontecido naqueles últimos... QUARENTA MINUTOS! OS BIFES DA MAMÃE! Então ele tentou seguir seu caminho e ir embora porém foi seguro por um dos pais. Irritado, furioso, possesso ou, no popular, fulo da vida com... o Billi J.?

- Mas eu não...

Não deixaram-no completar o que ia dizer. Arrastaram-no naquele mal entendido, naquele momento mesmo, até a escola onde... bom, a história é longa e o resumo é esse:

O Billi J. foi acusado de assédio às suas colegas, o diretor o suspendeu por três dias, ele perdeu os bifes da mamãe, ficou uma semana sem poder comer bergamota e...

... dias depois, quando voltou para as aulas, descobriu que suas colegas, horas depois, conseguiram falar para os pais que ele não havia feito nada mas esses não quiseram voltar atrás nem mesmo com um pedido de desculpa.

Seus colegas riam. Riam. E por vários dias ficaram relembrando-o daquele momento.

- Você é um idiota mesmo, criança. Se ao menos tivesse juntado-se a nós... teria sido suspenso por justa causa.

- Você é um otário.

E todo aquele blá blá blá infantojuvenil que todos sabemos que, atualmente, é considerado bullying.

Ainda sem saber o que pensar, continuava andando de cabeça baixa pelos corredores e, mesmo sem ter feito nada errado - a omissão infantil é relativa quando se está com fome e a próxima refeição vem a ser bife à milanesa -, não tinha coragem sequer de olhar, disfarçadamente, para a Renata. Ah, Renata. Mas o pior era que o diretor da escola e aquela idosa chata da biblioteca ficavam encarando-o como se ele fosse um pervertido, como se tivesse matado alguém, ou feito algo pior como... desperdiçado uma bergamota atirando-a em uma parede.

Aquilo tudo era injusto demais! Billi J. ficou triste, muito triste mesmo, por dias...

Até que, em um qualquer ele ouviu uma voz ao seu lado, dizendo:

- Estou feliz por saber que você seria incapaz de agir como aqueles bobos.

Era ela, transformando aquele inferno em... um paraíso. Bem esperto é aquele que diz que não há sorriso sem lágrima. E como o Billi J. estava sorrindo só por ter ouvido a Renata falando-lhe... falando consigo.

Ah... o Billi J. voltou a sorrir!

*vago, muito vago.

Um comentário:

Érica Ferro disse...

Que final lindo!
Tudo valeu a pena no final, né? Renata falando com Billi J., se aproximando dele. Oh, lindo!

Gostei, gostei!

Sacudindo Palavras