- Então, por que está aqui?
- Terminei um relacionamento há uma semana e não quero ficar pensando nesse fim.
- Porque isso machuca? Porque você está arrependido de algo que fez? Porque não quer lembrar do que ela lhe fez?
- Não. Porque não quero pensar no fim.
- Como acha que posso ajudar-lhe?
- Você é que deve saber.
- Conte-me então sobre esse relacionamento. Quem era ela, o que gostava, como se conheceram, quanto tempo de relacionamento, enfim, conte o que quiser contar sobre.
- A Renata era, e é, a mulher mais linda que já vi em minha vida. Até hoje, pelo menos. Ela é inteligente, simpática, sorri de maneira espontânea, está sempre tentando ajudar, ela é original, gosta de boas músicas, de arte, me ama muito. Nos conhecemos na infância, por anos fui apaixonado sem conseguir demonstrar. Começamos a namorar, ela ficou anos longe, quando voltou para cá voltamos a namorar... não sei, o final do relacionamento é estranho, não faz sentido algum.
- Por que?
- Porque amo ela da mesma forma que sempre amei. E ela também.
- Então por que terminaram?
- Escolhas. Ela decidiu voltar para Londres, eu decidi ficar. Foi um acordo, entre aspas, pacífico. Não brigamos, discutimos e nem existe aquela coisa de 'relacionamento desgastado', entende? Terminamos porque... sabe, jogadores de futebol não sabem a hora de parar porque em vez de pararem depois de conquistar um título importante, sempre querem mais e então... acabam se aposentando no ostracismo.
- Então vocês terminaram o namoro agora para evitar que um desgaste pudesse afastá-los para sempre?
- É por aí. Percebemos que, de alguma forma, tudo o que vivemos foi... tudo o que poderíamos ter vivido e, ao invés de repetir as coisas, uma por uma, preferimos uma nova história. Sozinhos.
- Ainda conversa com ela?
- Todos os dias, somos amigos.
- Amizade colorida?
- Ela está em Londres e eu aqui, que tipo de cor pode haver nessa amizade?
- Ouh, essa doeu. Espere um pouco.
- Por que?
- Preciso recolher meus dedos que acabou de cortar. Haha.
- Gostei do seu senso de humor, mas estamos perdendo tempo.
- Como era o relacionamento de vocês?
- Ótimo. Somos pessoas diferentes, bastante diferentes porém, levamos a sério que um devia completar o outro. Nossas diferenças mantinha-nos indivíduos porém sempre fizemos o possível para estar em unidade, como um casal deve estar.
- Pensaram em casamento?
- Claro, sempre. Meu sonho é ser pai. Inclusive nossos filhos chamar-se-iam Carlos e Ana.
- E isso não seria novidade suficiente para o relacionamento?
- É uma boa pergunta... mas não.
- Por que?
- Porque percebemos que ela não nasceu para ser mãe.
- Perceberam?
- Ela percebeu e conversou comigo sobre. Pensei bem e vi que ela tinha razão.
- Por que acharam isso?
- Não há muitas explicações, ela nunca sentiu-se bem com crianças e... elas acabariam responsáveis pela nossa união. Chegaria um dia em que...
- ... a paternidade não seria forte o suficiente para segurar um casamento.
- É por aí.
- Como se sente com isso?
- Relacionamento, fim do mesmo, Renata ou filhos?
- Fim do relacionamento.
- Estou... não sei.
- Como?
- Não sei dizer o que sinto. Amo-a demais e isso embasa minha alegria por saber que ela está bem, que está correndo atrás de um dos seus sonhos, não consigo ficar triste com isso.
- Sente-se aliviado?
- Desde que tinha, sei lá, seis anos de idade, eu olho para ela e vejo... bom, não é o que eu vejo.
- É o que você sente?
- Não só. Eu poderia descrever como ela é, todas as nossas conversas, os momentos, poderia falar e, acredite, eu falaria sobre ela por semanas ininterruptas entretanto...
- Entretanto...?
- Nada disso vai conseguir dizer o que o amor que sinto por ela fez em mim. Não no que eu fiz, escolhi, enfim, mas no que eu sou.
Silêncio.
- Continue.
- Tudo o que eu poderia alcançar, como indivíduo, foi, de alguma maneira, por causa dela.
- Para agradá-la? Para conquistá-la? Para mantê-la por perto?
- Não.
- Então?
- Ela sempre provocou sentimentos bons em mim. Sede de conhecimento, vontade de amar a todos, enfim, só bons sentimentos, só boas coisas. Ela despertou o que de melhor poderia haver em mim.
- Durante todo esse tempo?
- Sim.
- Estamos falando de quantos anos?
- Eu a conheci quando tínhamos... sei lá, seis anos. Então são uns... 20 anos, por aí.
- Contando uma pausa...
- Que não interferiu no que eu sentia.
- Se o seu sentimento não muda, se não está decepcionado... por que veio até mim?
- Queria que me ajudasse a entender isso.
- Isso?
- Por que estou insosso diante de tudo isso.
- Defina: insosso, nesse caso.
- Faço o que preciso fazer no trabalho, saio com meus amigos, assisto futebol, minha rotina não se alterou à exceção do tempo que passava com ela.
- Onde entra o insosso?
- Em tudo. Nada do que tenho feito gera algum tipo de satisfação.
- Nem mesmo hobbys?
- De certa forma.
- O que você fazia que lhe dava maior satisfação?
- Sempre gostei de esportes. De escrever. De desenhar. A Renata me ensinou a gostar de dobraduras e pintura. Gosto de teatro, cinema, enfim, artes num geral.
- Tem feito isso com frequência?
- Sim, mas nada com muita vontade. Faço porque sei que é bom, que sou bom nisso, que gosto... e não porque isso está me satisfazendo ou completando, de alguma forma.
- Já pensou que pode ser só uma fase?
- Eu sei que é só uma fase.
- Por que não espera ela passar, então?
- Seria uma boa opção...
- Se...?
- ...se eu não tivesse vontade de me redescobrir.
- Por que acha que precisa fazer isso?
- Eu não preciso, mas tenho vontade.
- Agora entendi onde entro nesse seu... "problema".
- Talvez. Há algumas coisas do passado também que ainda incomodam-me.
- Como por exemplo?
- Raiva guardada por anos.
- Isso, de algum modo, ainda o incomoda?
- Eu disse que está guardada, não que está à flor da pele.
- Por que não a deixa guardada, então?
- Não é um bom conselho. Sinto como se estivesse à beira de explodir.
- Por que?
- Porque é muita raiva guardada, reprimida.
- Por que reprimiu tanta raiva assim?
- Eu disse antes, a Renata despertava o que havia de bom em mim e a tolerância, por causa dela, era algo necessário uma vez que ela não merecia, sob qualquer hipótese, ouvir qualquer tipo de reclamação minha.
- Ela reclamava de alguma coisa com você?
- Sim. Várias vezes por semana até.
- E ainda assim você não sentia vontade de fazer o mesmo?
- Estamos falando de períodos de tempo diferentes. A minha raiva fora guardada antes de namorarmos.
- Não entendo.
- Nunca quis que ela me visse com raiva. Até porque, não levaria a nada além de risos...
- Rir é bom para liberar raiva.
- Não no meu caso. Eu era magrelo, seco, fraco. De que adiantava ficar com raiva e, na tentativa de extravasar, acabar apanhando mais ainda?
- Você apanhou quando era criança?
- Mais subjetivamente do que literalmente. Hoje chamam isso de bullyng.
- Por que acha que haverá um momento em que não conseguirá mais controlar toda essa raiva que diz ter?
- Porque não há mais a Renata por perto para que eu tenha motivos para controlar.
- O que irrita você?
- Se soubesse, não estaria tão preocupado pois poderia facilmente preparar-me para determinada situação de raiva em potencial.
- Do que você não gosta?
- Eu disse antes que estou tentando me redescobrir. Coisas ruins não faziam parte da minha vida enquanto a Renata estava comigo. Eu relevava tudo.
- Agora não sabe como lidar com isso.
- Entendeu o que estou fazendo aqui, mesmo, não é?
- É o meu trabalho mas...
-... o que?
- Bom, pelo que você havia me dito, no começo da consulta, parecia ter a ver, diretamente, com o fim do relacionamento com a Renata.
- E tem mesmo. De um jeito diferente.
- Entendi, mas...
- O que?
- Bom, pelo que você havia me dito, no começo da consulta, parecia ter a ver, diretamente, com o fim do relacionamento com a Renata.
- E tem mesmo. De um jeito diferente.
- Entendi, mas...
- O que?
- Sua hora acabou.
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