sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Histórias de uma vida não vivida(14)


*Nem a maior preparação, os mais intensos treinamentos, as mais cautelosas preocupações e todos os cuidados possíveis são capazes de evitar que algo dê errado na hora, ou mesmo antes da hora do combate, da disputa, de qualquer duelo, contra o melhor do mundo, o companheiro de bar, o vizinho ou consigo mesmo. Não há como evitar que erros sejam cometidos, que as coisas aconteçam erroneamente ou nem aconteçam. Você não pode confiar totalmente em alguém, porque todos um dia erram, inclusive você.

Saiu de casa apenas com uma mochila nas costas. Mochila? Aquilo mais parecia um pedaço de pano enrolado e com as extremidades presas por algumas coisinhas que pareciam grampos. Saiu de casa sem levar roupa ou comida na mochila. Tinha apenas um livro, um cartaz de publicidade e umas poucas moedas. Era com aquilo que viveria, na melhor das hipóteses, as próximas semanas.

Em busca de um sonho. Sonho que seu pai lhe ensinou a sonhar. Um sonho que veio de seu avô e chegou até si. Inicialmente apenas um sonho, mas ele viveria e faria tudo para realizá-lo, por si, por seu pai e também por seu falecido avô. Lutaria, faria guerras, moveria montanhas e cavaria buracos intermináveis se fosse preciso. Não mediria esforços.

Chegando na cidade grande após dias e mais dias de viagem, nada viu. Não havia uma pessoa na rua. Estaria no lugar errado? Viu as placas, mas não sabia ler. Não sabia o que eram muitas daquelas coisas. Só sabia que queria lutar, que precisava lutar, que seu sonho era lutar e conquistar o mundo com lutas. Lutas justas. Lutas onde provaria seu talento, seu valor, sua força, sua coragem, seu sonho.

Sem saber para onde ir, quase morto por dias sem comer, parado na entrada de uma cidade vazia. Não sabia para onde ir, como ir, o que fazer. Sentiu um cheiro de comida e, com um instinto olfativo que mais parecia de um cachorro, foi até o cheiro. Mas não pode comer, suas moedas não foram aceitas, embora fossem do ouro mais puro extraído no pé da montanha onde vivia. O que faria? Não sabia para onde ir.

Tentou falar com o homem, mas não conseguia. Sua voz o abandonara, parecia não ter mais garganta, tamanha fome e sede. Sem poder dizer nada, saiu do local e olhou para os céus. A chuva era iminente. Chuva? Tempestade. Dito e feito. Malemal chegou ao final da quadra e, mais uma vez sem saber para onde ir, começou a chover. Temporal forte, chuva de granizo, raios ensurdecedores. Os boeiros começaram a entupir, o nível da água na rua começou a subir, e ele, mesmo guerreiro, estava com fome, fraco, sem saber para onde ir.

Perdido. Desiludido. Aquilo então era a cidade grande, onde ele poderia lutar e realizar seus sonhos. Aquilo. Enchentes também aconteciam perto de onde morava, então por que não poderia conquistar o mundo ficando em sua casa, com seus pais, bem alimentado e sem todo aquela terra cinza que fazia quase sangrar seus pés descalços. A aparência era diferente mas as coisas eram iguais.

A enchente tornou-se uma catástrofe natural de dimensões gigantescas e prejuízos incontáveis. E ele lá, afogando-se no meio de um lugar que nenhuma esperança de vitória lhe dava. Seu sonho ficava cada vez mais distante, mas ele não desistiu. Subiu na estátua do presidente do país que estava na praça, também inundada e ficou sentado lá. Esperando que o nível da água baixasse e que então ele pudesse procurar alguém que pudesse lhe ajudar com seu sonho.

Não tinha mais forças. E a situação piorou quando um helicóptero da televisão mais assistida do país o filmou. O povo considerou aquilo um atentado contra o governo, o início de uma revolta. Ele não falava a língua da maioria, saíra do interior falando apenas um dialeto local. Vinha de longe, não sabia nem que onde vivia era um país. O que era um presidente então? Ele sequer entendia essas palavras.

Então a enchente já não importava mais. O que importava para o povo, para o governo, para o mundo era que algum rebelde estava sentado na cabeça da estátua do presidente. Fazer protesto durante uma enchente era algo inconcebível para todos, mas acharam que era isso o que ele fazia lá. Aproximaram-se e tentaram conversar, mas ele nada dizia. Não tinha forças, não tinha mais esperanças.

Então, quando ele colocou a mão na sua 'mochila' de panos completamente encharcados, atiraram e mataram-no. Ele puxaria uma arma daquela sacola de pano, pensaram. Que nada. Queria mostrar a eles o livro, o cartaz, por que estava ali. Sua voz, que já não era ouvida desde que ali chegara, calou-se de vez. Seu sonho de conquistar o mundo lutando, de maneira justa e sem ferir ninguém a ponto de matar, acabara ali. Uma arma foi colocada propositalmente em sua sacola para justificar o tiro. Mataram-no sem razão alguma.

Para onde quer que tenha ido, levou consigo seu sonho. Queria ser um lutador, daqueles que quebram madeiras com as mãos sem dificuldade alguma. Queria apenas conhecer o mundo lutando, justa e honestamente. Não teve tempo de pensar que seu sonho acabara ali, que sua vida acabara ali. Não teve tempo. De lutar, de sonhar.

O mundo conspirou contra si. As pessoas não o conheciam mas já o odiavam. Sem apoio, sem ser entendido, sem ser reconhecido. Mas é provável que, se algum dia alguém encontrar com ele no céu e perguntar 'você teria ficado em casa, bem alimentado, trabalhando com seus pais e vivendo longe do mundo se soubesse que morreria daquela maneira?', ele responda 'jamais, pois assim teria abdicado de viver, mesmo que por pouco tempo e da pior maneira possível, um sonho que não era apenas meu'.

É provável que sejam os sonhos sem sentido de existirem, aqueles cuja possibilidade de não serem realizados beira a totalidade, sejam a única coisa que ainda haja em pró da esperança. O que não depende de nós faz com que essa esperança seja ainda mais importante. Porque acreditar na possibilidade é racional, acreditar no quase impossível é esperança. Com uma grande enchente de loucura.

4 comentários:

Thequila disse...

Ao som de Jimi Hendrix - Fire

Acontece... Muitos sonhos morrem, bem como seus sonhadores, antes que se tome conhecimento de suas existências. Triste, mas real.
Não é algo pelo qual valha a pena lutar. As pessoas não entenderiam, e nem irão entender, durante um bom tempo.

Então, que chegue 2012, onde as pequenas mudanças se somarão em uma grande mudança mundial.

Anônimo disse...

Matar um sonho é um crime!!!
Ninguém é bom o bastante para matar o sonho de alguém...
Contudo, existem vários assassinos a solta por ai, ceifando os sonhos das pessoas...
Mas cabe a cada um decidir se vai deixar seu sonho morrer ou se vai lutar com todas as forças por ele...
Tudo depende de uma única pessoa, você!!!

Bjs

Jééh disse...

isso bastante triste/fato, fiquei a beira das lagrimas aqui :'(

mas esse texto também me lembrou Faroeste Caboclo ^^, mas tbm crio que por mais dificil que seja, o que naõ sei deve fazer de maneira alguma é desistir da seu sonho/fato mesmo que ele seja conquistar o mundo ^^

Érica Ferro disse...

E ele morreu sendo um ser humano de verdade.
Isso é louvável num mundo onde todos dissimulam os sonhos e escolhem andar pela direta quando de fato queriam ir pela esquerda.

"Porque acreditar na possibilidade é racional, acreditar no quase impossível é esperança. Com uma grande enchente de loucura."

E eu quero ser louca, a mais louca.

Beijo, Vini.
Excelente conto!