domingo, 2 de setembro de 2012

Histórias do Billi J. - O fim em palavras (II)

- Você de volta aqui, Billi, por que?

- Ah, então se lembra da minha última consulta.

- Foi há uma semana, seria estranho se esquecesse de alguém que... acha que pode ter algum problema psiquiátrico mas não sabe bem o que.

- Raiva.

- De mim?

- Não, alguém me disse, algum dia, que em algum momento não conseguirei controlar-me e acabarei... bem, machucando alguém.

- Alguém disse que você não será capaz de lidar com ira.

- Mais ou menos isso.

- Então conte por que você acha que essa pessoa pode estar certa.

- Bem, desde cedo, fui ensinado por meus pais a respeitar todas as pessoas. Ser educado, atencioso, amigo. Sempre agi dessa maneira, pacífica, gentil, agradável. As pessoas sempre diziam aos meus pais que estavam criando-me muito bem, pois eu era o que todo pai sonha para um filho. Não sei, isso, de alguma forma, sempre pressionou-me a buscar acertar sempre.

- E seus erros nunca foram bem aceitos por...

- ... mim.

- E quais podem ter sido seus erros na infância?

- Na infância... não sei, não lembro de coisas significativas.

- Tente.

- Uma vez fui chamado na diretoria por ter ido buscar um amigo que não tinha voltado à aula.

- Foi repreendido por isso? Quantos anos tinha?

- Acho que cinco. Eles me disseram que eu era novo demais para sair na rua.

- Algo mais?

- Uma vez briguei com um menino, na segunda série.

- Por que?

- Não sei. Acho que eu tinha expulsado ele em um jogo na educação física e ele quis tirar satisfação depois.

- Quantos anos você tinha?

- Sete.

- E você bateu muito nele?

- Eu apanhei feio. Fui para casa com uma camisa branca, com estampa de 'Tom e Jerry' ensopada de sangue.

- Quantos anos ele tinha?

- Não sei, uns 12.

- Os pais dele foram chamados na escola junto com os seus, suponho.

- Que eu me lembre, só meus pais foram chamados, logo eu levei uma bronca imensa por ter brigado, ainda mais com um menino mais velho.

- Por que os pais dele não foram chamados?

- Ele tinha, pelo menos, cinco anos a mais do que os outros alunos daquela turma, os pais dele não estavam nem aí para ele, coitado, não consigo imaginar onde ele esteja hoje.

- Você sente raiva quando lembra disso?

- Não.

- O que você sente?

- Fico triste por ter decepcionado meus pais.

- O que você sente com relação a essa sua briga, esquecendo seus pais.

- Ãhn... não sei, acho que nada. Eu não lembro quantos socos levei nem nada disso, só sei que voltei para casa com a camisa ensopada de sangue e o nariz inchado.

- Alguma outra lembrança?

- De brigas na escola?

- Pode ser, você que sabe.

- Tem mais uma mas... ela é meio controversa.

- Por que?

- Porque, no final das contas, eu não briguei.

- Ele fugiu?

- Eu me recusei a brigar... está bem, eu fugi, mas não foi correndo, só me recusei a brigar com ele.

- Ele era mais velho também?

- Ele morava na mesma rua que eu, considerava-o um dos meus melhores amigos.

- Por que queria brigar com ele?

- Ele queria brigar comigo.

- Por que?

- Não sei. Estávamos sempre juntos, era o último dia de aula, ele quis brigar por algum motivo e... eu não quis.

- Por que não quis?

- Porque... não sei, acho que fiquei com medo.

- De apanhar mais uma vez?

- Do que os poucos amigos que eu tinha iriam pensar se eu apanhasse de alguém que sempre ficou atrás de mim.

- Em que sentido ele ficava atrás de você?

- Minhas notas eram melhores, eu jogava futebol melhor, todas as pessoas da escola me conheciam, mesmo aquelas que já estavam séries a frente. Não sei, quando precisavam de um representante da turma, era eu... mas éramos amigos.

- Talvez ele tivesse inveja e por isso quisesse mostrar, brigando com você, que ele era melhor em alguma coisa.

- Provavelmente mas... não gosto de pensar assim.

- Por que?

- Porque não me sinto bem nessas listas, não gosto de pensar que sou melhor que alguém.

- Seus pais diziam que você não devia se achar melhor do que ninguém?

- Acho que sim, sempre me ensinaram a ser humilde e nunca passar por cima dos outros para conseguir o que eu queria.

- Então... o que sente a respeito dessa briga que você não brigou?

- É estranho, me arrependo.

- De não ter brigado?

- Isso mesmo. Eu era um pouco maior do que ele, era mais rápido, eu tinha chances de ganhar essa briga.

- Você não teve medo de apanhar, teve medo de ser novamente repreendido por professores e pelos seus pais.

- Humm...

- O que eles falaram sobre isso?

- Eles não souberam. Eu disse que ele morava perto da minha casa, nossas mães conversavam bastante, nem eu nem ele contamos porque... não aconteceu nada.

- E a amizade de vocês?

- Ficamos sem nos falar por anos e, bom, hoje nos cumprimentamos mas nada demais.

- Acha que tem alguma relação?

- Não muito. Esqueci de contar que eu me tornei o melhor amigo do melhor amigo dele.

- Mais um motivo para ele querer ser melhor em alguma coisa.

- Insisto que me sinto mal com isso, apesar de ter usado esse 'melhor' para representar o contexto.

- Há pessoas com melhores notas do que outras. Elas são melhores do que as outras por tirarem mais notas, não há demérito nisso.

- Eu sei que não porém... não gosto, só isso.

- Há outra situação, de outro tipo agora, que você lembre que originou algum tipo de repressão?

- É difícil lembrar assim, do nada.

- Há alguma outra lembrança marcante da sua infância?

- Ãhn... um dia tivemos um... jogo, na escola, de perguntas e respostas. Um representante de cada turma respondia a perguntas junto com o professor responsável pela turma.

- Você foi o representante?

- Eu não quis.

- Por que?

- É difícil dizer, os colegas votaram em mim para ir mas... eu não quis.

- Por que você não quis?

- Não sei... eu tinha uma autoestima baixa.

- Ou tinha medo de errar uma pergunta e ser motivo de chacota.

- Eu estudava mais, lia mais, tinha mais facilidade com matemática. Minhas notas eram melhores, não fazia muito sentido eles rirem de mim.

- Fazia muito sentido você temer que eles rissem de você. Você tinha muito a perder, sua reputação de, eu acho, melhor aluno da turma. Eles não teriam nada a perder.

- Eram meus amigos.

- Com quantos você fala até hoje?

- Com um.

- Eles não eram seus amigos, eram seus colegas. Acha que esse rapaz, que é seu amigo até hoje, riria de você?

- Não.

- Ele é seu amigo, então. Eles não eram. Billi, você teve medo de errar e ser alvo de brincadeiras, de ironias.

- Também estou arrependido por não ter ido.

- Isso incomoda, não é mesmo?

- Muito.

- Você não tinha uma relação muito boa com seus colegas, natural que tivesse medo que eles pensassem que você não era bom, afinal, a maioria absoluta das crianças que tiram as melhores notas da turma são crianças tímidas e sem muitos amigos. Você era tímido, não era?

- Sim.

- Como se sente, lembrando disso?

- Além do arrependimento?

- Sim, o arrependimento é o menos importante.

- Sinto-me tranquilo porque... não sei, acho que lembrar disso diminui minha sensação de fracasso.

- Bom, continuamos na próxima semana, se você quiser.

- Sim.

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