segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Histórias de uma vida não vivida (52)


*Fez promessas que sabia bem ser incapaz de cumprir. Ninguém no mundo - ao menos não humano - seria capaz de ir até o fim para com tudo. Disse, algum dia, que todo amor morre se viver apenas por si. A amizade é uma forma de amor e, portanto, quando por si, morre também. Suas palavras não eram pensadas, eram impulsivas. Falava o que estava sentindo, jamais pensaria que aquilo algum dia pudesse deixar de ser. O quase tocava seu rosto e acariciava-o como uma mãe demonstrando amor pelos filhos. Então o acaso vem e derruba. O quase, o amor... e a promessa. Não estava mentindo, de forma alguma. Apenas não compreendeu que por si, assim como o amor, o ato de amar não sobrevive. Em algum momento, cedo ou tarde, é necessário muito mais do que existir amor ou mesmo amar. É preciso cuidar. E é preciso deixar que Alguém cuide.

Eram duas da tarde e as nuvens tornavam o céu um quadro pintado pelo maior dos artistas terrenos. Aliás, nenhum deles conseguiria retratar aquilo. Divina criação, o azul claro e o branco intenso das nuvens destacavam-se de todo o resto. A montanha, aquela em que ninguém mais prestava atenção, dava à paisagem um toque terreno porém não menos incrível, mesmo que não houvesse uma árvore visível lá. Aquele, dito, troço marrom, trazia para perto um pouco do inalcançável do céu.

Dentre toda essa natureza, o contraste entre o impossível azul claro e o palpável marrom era, literalmente, uma grande analogia para o dono das mãos estaladoras de dedos. Parecia haver algo errado naquelas articulações, ele não parava um instante sequer com aquele 'tec tec' de dedos a estalar. Quando conheciam-no, antes mesmo do nome, perguntavam:

- Por que você não para de fazer isso? - sobre aquilo.

Não tinha resposta para a pergunta. Gostava daquilo. Tec tec tec. Esperando o ônibus. Tec tec. Lendo jornal. Tec tec. Esperando a fila do supermercado. Tec tec tec. Ouvindo um amigo falando sobre o futebol do final de semana. Tec tec. Ajudando sua mãe a lavar a louça. Tec tec. Tomando banho. Tec. E mais nada somente quando ela chegava perto dele, na sala de aula.

Ah, sim, não era sempre que estalava os dedos. Quando ela, sim, ELA entrava na sala, seus dedos paravam, como por encanto. O barulho de suas mãos era substituído pelo do coração. Felizmente ninguém mais tinha a capacidade de ouvi-lo batendo ensandecidamente. Ou será que alguém era capaz de sair do seu mundinho para escutá-lo, mentalmente? Claro que não. E, que diferença fazia, não conseguia abrir a boca para nada. Só sabia resmungar algum 'sim' ou 'claro' ou ainda, a palavra símbolo dos tímidos: 'aham'. Olhando para o chão e resmungando, claro.

Não que fosse novidade para alguém. Seus dedos inquietos eram a prova disso mas por que, então, ela... o que ela deveria fazer? Dizer algo como:

- Já reparei que você para de estalar os dedos quando estou chegando. Amo você, podemos conversar sobre o nosso futuro juntos?

Ou o clássico.

- Sim, eu também amo você. - mesmo que ele nada tivesse dito e, após isso, certamente enterraria a cabeça no chão.

Seus colegas insistiam que deveria falar com ela. Ele queria entretanto, né, pois é, não sabia como explicar. Era uma coisa de costume, entende? De criação, sabe? No fundo, sabia que suas desculpas eram mera covardia. Não julgava-se a pior pessoa do mundo, embora soubesse que seu hábito de comemorar, muito, no episódio em que o Tom finalmente captura o Jerry o impedisse de ser uma boa pessoa, em si. Ele era um covarde miserável, tinha medo de dizer para a atendente do supermercado que ela havia dado-lhe o troco errado. De tomar a frente na fila do ônibus mesmo quando estava carregando seis livros na mochila.

Enfim, agora vocês entendem o porquê do tique nervoso com os dedos, certo? Claro que faz sentido, não existiria outra razão para tal. E esse tec tec só parava porque ela era... ela. Daquele jeito que nenhuma outra pessoa conseguia ser. Mesmo que pouco conversassem, as palavras dela não saiam da cabeça dele. Ele lembrava como ela mexia os lábios para pronunciar 'legal'. Daquele jeito que só ela conseguia. E a simpatia, a alegria, o jeito espontâneo de atirar uma bolinha de papel no lixo e vibrar como se fosse a cesta do campeonato, o sorriso, o olhar carinhoso.

Estava cansado de tudo aquilo mas não sabia como reagir. Pensava, ensaiava e, até mesmo, treinava com suas amigas o que poderia falar quando estivesse perto dela e, na hora, claro, amarelava. Era um bobão. Um cagalhão, com o perdão do termo e da rima. Miserável sentia-se quando nem sequer olhar em nos olhos dela conseguia. Tinha medo. De que ela soubesse - o que provavelmente já sabia - pelo seu olhar de... apaixonado.

Desgraçada paixão. Desgraçado medroso.

Era mais fácil puxar uma bigorna atada nas orelhas do que dizer para uma colega que estava apaixonado por ela e que, por isso, conseguia superar seu tique nervoso.Aquilo precisaria acabar. Ah não, suas orelhas ainda não eram fortes o suficiente para puxar uma bigorna. Seu medo do nada teria de ser superado. Nem que fosse para que parasse de perder tempo inventando desculpas para quando perguntado sobre a razão de ainda não ter demonstrado aquilo que sentia.

Que ela o ignorasse, o chamasse de idiota, de bobalhão, de lunático, de maníaco pervertido, de qualquer coisa, que batesse nele com um estojo, com uma mochila, com um apagador ou mesmo com uma cadeira. Ela tinha de saber, por ele mesmo, o que já sabia pelos outros - e pelos seus dedos quietos em sua presença.

Iria declarar-se. Mesmo que, se por algum milagre absurdo e inimaginável, ela dissesse que sentia o mesmo, eles namorassem por uma semana e depois nunca mais olhassem um no rosto do outro. Mesmo que, depois de acertarem os detalhes - de alguma coisa - ele voltasse a estalar os dedos na presença dela e, portanto, o fogo da paixão fosse apagado pela água do descaso, da rotina ou da indiferença.

Ele iria declarar-se. Abriria seu coração e lhe diria o que ela (provavelmente) já sabia, só que por sua própria voz. Prometera até mesmo parar de estalar os dedos de uma vez por todas se conseguisse ao menos dizer a ela o quando estava apaixonado e todas aquelas coisas que somente uma pessoa nesse estado (deplorável) é capaz de expressar.

Na manhã seguinte, ela entrou na sala. Ele parou de estalar os dedos. Ele levantou-se e foi até ela.

Abriu a boca para falar mas ela o interrompeu:

- Bom dia! Você parou de estalar os dedos?! Que bom, já não aguentava mais esse tec tec chato. Você é bem querido mas esse barulho era irritante mesmo.

Desolado, machucado, derrotado, humilhado, decepcionado, inconsolável e destruído num todo, ele respondeu, ou melhor, resmungou apenas:

- Aham.

E estalou o mindinho esquerdo.

Nenhum comentário: