quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Histórias de uma vida não vivida (39)


*Quando fecho os olhos posso sonhar sem qualquer tendência. Os olhos são impedidos de ver e as mais diversas sensações podem ser percebidas para, aí sim, transmitir ao sonho um aspecto imaginável, entretanto real. Realidade que foge do meu controle quando a minha imaginação, e com ela os meus desejos mais escondidos - e sinceros - vem à tona. Fujo da imagem que está ao meu alcance e me concentro na que longe de mim está. Pouco disso posso alcançar, quase nada terei comigo. Não me importo com isso, agora. Pois antes mesmo que feche os olhos, já começo a lembrar, a imaginar e, sem qualquer limite, a sonhar.

Ao acordar, hoje, estranhei ter dormido descoberto. A roupa de cama estava lisa como se ninguém passasse por ali há dias. Melhor para mim, pensei, pois não teria de arrumar. Meu colega de apartamento havia deixado a porta aberta, idiota! Aproveitei e, sem me arrumar, saí correndo pois estava atrasado. Quem se importa com a minha aparência? Os outros são os outros já cantou alguma voz brasileira.

Sempre tive, por hábito, desviar sempre que alguém pudesse bater em mim. Alguns não pisam em riscos ou divisórias no chão ou sempre pisam primeiro com o pé direito no chão ao acordarem, eu desviava de pessoas para não ter de pedir desculpas - ou resmungos mal humorados. A cidade estava cada vez pior, ninguém sequer esboçava olhar para mim, era como se todos estivesse atrasados, ou no mundo da lua.

Entrei no ônibus e, como de costume, estava lotado. Tive de ficar em pé, sem ao menos passar na roleta. Mais uma coisa estranha: ninguém bateu em mim, raspou em mim ou acertou uma bolsa ou mochila nas minhas costas. Que bom, apesar de ser ignorado até visualmente por todas as pessoas que cruzaram por mim, o dia estava sendo ótimo. Ah é, esqueci de escovar os dentes!

Apesar de quase ter sido jogado para fora do ônibus várias e várias vezes por freadas bruscas do motorista - ah, as pessoas que pedem para o ônibus parar quando ele está quase em cima da parada me... fazem sentir uma espécie de irritação que não sei definir - estava me sentindo muito bem, sem dores no corpo ou nos braços que tanto esforçavam-se para manter-me naquele ônibus. O dia estava lindo, o céu azul e algumas nuvens brancas me davam a certeza de que aquele inferno terrestre em nada se compara com a Natureza em sua essência absoluta.

Pedi para o cobrador, em tom de piada, se poderia sair pela frente - sem pagar. Ele olhou para o outro lado como se nada tivesse acontecido, como se ninguém houvesse falado consigo. Que... como é que se diz? Ah, deixa para lá. Enfim, até fui educado e perguntei se ele havia me ouvido mas... nada. Então olhei para o motorista e, após deixar um senhor de idade subir no ônibus, desci. A porta estava fechando, não sei como nem prendeu a minha mochila, ou a minha perna. Ah, esqueci a minha mochila?!

Estava perplexo porém, apesar de todas as estranhezas inconvencionais, estava alegre como um cachorro que acaba de ganhar um pedaço de carne. Ah, que fome! Parei em uma lanchonete e pedi um cardápio. Ninguém olhou para mim. Não havia ninguém mais na lanchonete e eles esnobavam um cliente? Agradeci - talvez ironicamente - a atenção e saí sem dizer mais nada.

Que estranho, as pessoas me ignoraram tantas vezes e ainda assim me sintia bem. Ah, a aula! Corri para não me atrasar e, numa daquelas coincidências que fazem pensar 'não precisava mesmo ter saído de casa', olhei para um recado na porta da sala que dizia que todos estavam de luto e que não haveria aula. Não havia nome nem local de enterro ou afim. Estranho, não consegui lembrar de alguém ter morrido, tomara que não tenha sido a Carol, aquela pessoa realmente fazia as aulas ficarem engraçadas.

Caminhei mais e mais, apreciando o lindo dia, percebendo um bem estar em mim que nunca havia tido. O problema é que a falta de olhares para mim, nem que por consideração ou intenção de criticar minha falta de arrumação, começava a incomodar. Na parada de ônibus não havia ninguém. Um ônibus se aproximou e, quando ainda estava a uma distância considerável, acenei para que parasse.

Ele não parou e ainda por cima quase passou por cima de mim, se não sou bem vivo teria sido atropelado por aquele sujeito... que estranho, não me lembrava mais como criticar uma pessoa assim. Nem como xingar. Lembro que fazia isso mas agora... o que estava acontecendo?

As horas foram passando e à pé cheguei em casa. A porta estava fechada. Bati mas pareceu que ninguém havia ouvido. Estranho, nem mesmo eu ouvi as batidas na porta. Tentei gritar mas... não ouvia a minha própria voz! Será que no ônibus e na lanchonete acontecera o mesmo? Estufei o peito e gritei o mais alto que pude porém era como se não houvesse ar, não houvesse voz.

Saí correndo em direção a... onde eu estava indo? Minhas pernas se moviam por conta, cada vez mais rápido, nada de sentir o vento, nada de ter de fechar os olhos, sequer piscava, nada de desviar de buracos ou parar para os carros passarem. Corria sem amanhã e... sem hoje.

Então parei. Se lágrimas pudessem sair de meus olhos, choraria naquele instante muito mais do que em toda a minha vida. Não sabia o que dizer - até porque mesmo que soubesse, nenhuma palavra ecoaria no espaço - nem o que pensar. Estava perplexo, ou melhor, não estava mais. Nada.

Eu não era mais eu, minha voz não ecoava e minha presença não era notada porque... eu não estava mais aqui. Não havia lágrimas, voz ou aparência, não havia nada além de...

Não havia nada.

Eu não estava em lugar algum mais, embora pudesse, naquele momento, ver que algumas pessoas lamentavam o que ocorrera. Achei que nem sabiam mais que eu... existia. No passado. Quando me dei conta, o céu azul tomou conta de tudo, para onde quer que olhasse via um azul bebê magnífico. Talvez estivesse lembrando da minha infância, dos meus pais, amigos, da Carol.

Entrei para algumas histórias como parte do passado. Nada que todos venham a se lembrar.

Era como se fosse novamente um bebê, nas Mãos...

Um comentário:

... disse...

Nossa, eu entrei na história...
Muito estranho, mas gostei! =)