sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Histórias de uma vida não vivida(32)



*Em algum momento daquele dia, pensei que deveria ter ficado em casa. Não porque tudo havida dado errado, a chuva estragara a única cópia daquele jornal antigo, nem porque a mulher da farmácia me vendera um remédio que não era o da receita. Deveria ter ficado em casa porque nada que pudesse ter acontecido naquele dia colocaria um sorriso no rosto, um ânimo nos pensamentos, uma vontade naquele corpo que parecia de um morto-vivo dos filmes. Nem um céu azul esplêndido, uma árvore rica em detalhes que faziam dela a mais espetacular já vista, nem a possibilidade de realização pessoal ou profissional. Nada naquele dia poderia me fazer sentir vida em mim. Por mais que o pensar fosse, e ainda seja, a prova do existir, eu não estava satisfeito, feliz ou mesmo vivo com e por nada. Deveria ter ficado em casa. Fiquei em casa. Naquele íntimo de sonho platônico e invisível a todos, encontrei alguma coisa e descobri que deveria ter ficado em casa mesmo, pois somente ali descobriria em um sonho uma vida. A minha vida. Pelo menos parte dela.

"-Você me conhece?" era a única frase que nem seu pior pesadelo, nem sua depressão superada e muito menos uma amiga poderiam fazer surgir na mente dela. Como ele pode não se lembrar de mim? - pensava, inquieta, decepcionada, arrasada, caída no chão estatelada e, como dizem lá para os lados do interior de Bagé, de paleta na terra seca. Seus três anos de ensino médio só poderiam ser considerados bons porque ele estava lá. Não ao seu lado, não perto de seus olhos, mas no caminho de casa. Foram colegas antes de saírem dos anos do fundamental e agora ele lhe dizia que não sabia quem ela era.

"Você me conhece?" ficou na mente de Bianca por dias. Não conseguia comer pois aquilo tirava sua fome. Não conseguia estudar porque aquela pergunta tirava sua concentração. Se ainda tinha bilhões de neurônios, todos foram designados a tentar entender como ele não se lembrava. Ele pode ser ruim de memória, pensou, à princípio. Hipótese descartada quando lembrou do concurso que ele havia ganho de jogo da memória. Talvez fosse com ela, havia mudado um pouco, crescido alguns centímetros e seus cabelos agora eram mais longos. Não, essa ideia desapareceu em menos de 15 minutos.

Obcecada por uma resposta, foi ao encontro dele, mais uma vez. Vendo-a, perguntou o que havia acontecido dias atrás, quando ele lhe fizera uma pergunta e ela saíra correndo e chorando para lugar algum. Aquilo era o fim para ela. Não bastava não reconhecê-la e ainda tinha a cara-de-pau de colocar-se como inocente. 

- Eu fui sua colega por dois anos, 4 meses e 3 dias, totalizando 485 dias letivos em que estivemos na mesma sala, sem contar as 12 horas e 13 minutos de atividades extra-classe que fizemos juntos. Tudo bem, nunca fizemos trabalho em dupla e sequer trocamos cumprimentos mas, com todo esse tempo, você esperava que eu reagisse como à sua total falta de consideração para comigo, ein?

- Fomos colegas mesmo?

- E tem mais, desde que saímos do fundamental, eu vejo você saindo dessa escola todos os dias. Você caminha do lado direito da rua e eu do lado esquerdo. Você está sempre com dois ou três colegas seus e eu fiquei todo esse tempo te olhando enquanto caminhava sozinha. Sei que você gosta de salada de quiabo com suco de abacate porque é isso que você comeu nas 43 vezes em que almoçamos no mesmo lugar. Mas claro, você nunca percebeu que eu sempre sentava atrás de você e ficava lhe olhando com cara de boba. Eu também sei que você mora só com seu pai, pois sua mãe morreu enquanto ainda éramos colegas, e que ele lhe leva na escola todos os dias naquele Ômega preto lindo que você tanto gosta. Mas claro que você nunca me viu de dentro daquele carro maravilhoso. E tem mais, quando éramos colegas, sempre achei você muito bacana, porque nunca foi arrogante com nossos professores, nunca saiu no soco com os marginais e nem usou correntão de ouro como os riquinhos mas agora vejo que você é uma mistura de todos esses idiotas, pois nunca reparou que eu sempre quis que você ao menos me cumprimentasse, notasse a minha presença ou fizesse de conta que estava me olhando para tentar descobrir quem eu era. Você não sabe o quanto magoa saber que alguém por quem eu sempre guardei uma admiração incondicional faz de conta que eu não existo, que não me conhece e que não sabe que eu tirei 112 fotos enquanto não estava prestando atenção. Sim, 112 fotos suas eu tenho guardadas, sei do que você gosta, os seus horários e ainda assim você tem a petulância de dizer que não sabe quem eu sou, que não me conhece, que o que poderíamos ter tido não foi nada, que eu sou feia, desinteressante, chata e tudo mais. Você é um idiota, não passa de um idiota metido.

Bianca nem esperou a resposta. Virou as costas e, novamente, saiu correndo, chorando, sem direção clara. Quase foi atropelada. Quando cansou, sentou na calçada e percebeu o quão boba fora sua atitude. Como ele poderia lembrar quem ela era, saber que ela o admirava, que gostava dele sem que ela tivesse ao menos dito um oi e tentado se aproximar? A resposta para essa pergunta marcou o definitivo término da presença daquele rapaz em seus pensamentos, em sua vida.

- Não importa como, ele deveria saber que eu sou a Bianca.

Um comentário:

Anônimo disse...

um começo excelente para uma história sem inspiração

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