sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Histórias de uma vida não vivida (41)

*O antigo cântico que traz amor e ódio quase como um só sentimento, tamanha a proximidade entre eles, pode servir como base para tantas outras relações próximas entre sensações e sentimentos. Descobrindo em si os limites aonde chegam os efeitos de cada um deles, descobre-se a si mesmo como quase um todo. Há poucas partes de você que não podem ser descobertas por ações, pensamentos, sensações ou sentimentos. Há apenas uma parte que foge de tudo isso, de todas essas possibilidades. Você só descobre ela quando consegue dizer quem é. Não o que faz, o que pensa, quais são suas convicções ou quais são seus sonhos. Quem é você. Descobrindo isso, a parte alheia a pensamentos, sentimentos e ações é descoberta. Portanto, assim como o cântico várias vezes centenário aproxima ódio e amor, o seu autoconhecimento está quase grudado no conhecimento daquilo que é mais espontâneo em você.

Minha mente não parava de pensar. Na verdade, ela não pensava mais, apenas continuava funcionando em modo automático, embalada por ruídos - por vezes músicas - e outras formas sonoras. Meus ouvidos nada ouviam, tudo movimentava-se entre meus neurônios - fracos e fortes - tornando-me incapaz de continuar qualquer pensamento. Meus olhos liam, minha boca falava mas nada disso desviava o ruído, o barulho, que eu mesmo carregava. Quanto mais tentava fugir disso, menos conseguia entender o que estava acontecendo.

Sentei-me então em um banco. Sentou-se, também então, ao meu lado, um senhor de idade já avançada. Sua bengala era balançada por mãos trêmulas, conduzidas por uma melodia saída de sua boca. Parecia não querer incomodar-me, pois olhava para mim toda vez que fazia algum movimento com pernas ou braços.

- Estou incomodando-lhe, rapaz?

- Com o que?

- Com o meu assobio. Parece-me que quanto mais assobio, mais você se remexe aí, demonstrando insatisfação.

- Não, sem problemas, sua música não me incomoda.

- Música?

- Se a sua mente, assim como a minha, produzisse incessantemente ruídos quaisquer, qualquer coisa que passasse pelos seus ouvidos seria considerada música, da mesma forma que eu estou considerando seu assobio, baixo e inconstante, como música para meus ouvidos.

- Barulhos, ruídos, dentro da sua cabeça?

- Sim.

Pensei que, depois disso, continuaria balançando aquela bengala, assobiando, e pensando sob efeito de qual droga eu estaria. Porém, feliz ou infelizmente, me enganei com aquele senhor.

- Posso lhe ajudar?

- Não quero lhe ofender mas...

- Acha que porque sou velho não posso lhe ajudar?

- Não é isso.

- Então?

- Queria dizer que, a menos que o senhor seja psicólogo ou psiquiatra, não poderá me ajudar.

- Não sou um nem outro, entretanto posso tentar.

- Está bem, então, mostre-me como acha que pode me ajudar.

- Está vendo aquele pássaro.

- Qual deles?

- O que está no galho mais baixo da árvore.

- Sim, estou vendo.

- Fique olhando para ele.

- Por que?

- Apenas olhe para ele, fixamente.

- Está bem.

Conclui, naquele momento, que era o senhor, e não eu, quem precisava de ajuda. Por mais que olhar para um pássaro pudesse me trazer reflexões sobre a natureza, Deus e a vida num todo, os ruídos na minha mente não permitiam que qualquer pensamento fluísse com naturalidade. Permaneci alguns minutos olhando para o pássaro que, incrivelmente, não saiu do lugar. Meus olhos ficaram fixos nele mas meus pensamentos tendiam a ir para lugar algum, cativados pelo inferno de ruídos do qual não conseguia fugir.

- E agora?

- Continue olhando.

Pensei: Definitivamente é esse senhor que usa drogas. Quanto tempo estava perdendo naquela cena ridícula? Meia hora, quarenta e cinco minutos? Daqui a pouco alguém iria ligar pedindo o que eu estava fazendo e, o que eu poderia dizer? Oi, tudo bem, estou olhando há quase uma hora para um pássaro porque um senhor de idade, provavelmente chapado, pediu que o fizesse para libertar minha mente desses barulhos... É claro que não diria isso. Então?

- Desculpe mas, tenho que ir, já estou há meia hora aqui e...

- Meia hora?

Ele riu como se tivesse contado a piada dos quatro tomates.

- Estamos aqui há somente cinco minutos. Espere mais um pouco.

Estranhamente, enquanto tentava falar com ele, não tirava os olhos do pássaro... CINCO MINUTOS? Duvido, além de velho, chapado e com problemas, ele não tinha noção de tempo. Como ainda não tinha motivos para sair correndo dali a fim de evitar um fiasco maior, continuei olhando, 'parado feito bocó na rua' para aquele pássaro.

- Está bem, pode parar de olhar.

Ufa.

- E agora?

- Agora me diga de que cor é o pássaro.

Para o meu espanto, não sabia dizer. Fiquei minutos e minutos olhando para aquele... pássaro e não consigo lembrar de que cor era.

- Esqueceu?

- Estranho. Esqueci sim.

- Não, você não esqueceu. Você sequer memorizou qual era a cor do pássaro.

- É que quando eu vou começar um pensamento, esses barulhos vem à tona e...

- Explica, mas não justifica. Se tivesse olhado apenas por alguns segundos, até seria aceitável mas, olhar por tanto tempo para um pássaro apenas e não lembrar sua cor é a prova de que você não acredita, mesmo, que possa ser ajudado por alguma pessoa. Nem eu, nem psicólogo ou psiquiatra, ninguém pode ajudar quando o problema não são os ruídos, e sim você mesmo.

Perplexo, não sabia o que dizer para ele.

- Olhe mais uma vez, e descreva as cores do pássaro.

Então olhei mais uma vez para o pássaro e... bom, o pássaro não estava mais lá.

- Ele não está mais no galho. De que cor ele era?

- Quando eu era jovem, há uns cinquenta anos, costumava sonhar acordado. Ficava fantasiando, criando e vendo imagens que não estavam diante dos meus olhos.

- Deveria, então, ter me feito escutar alguma coisa, e não ver.

- Ouviu-me assobiar e pouco importou-se.

Fiquei em silêncio. Continuava sem saber o que dizer.

- O que eu queria lhe mostrar, hoje, é que quando você não se dedica a alguma coisa que faça a sua mente trabalhar, não consegue se dedicar a nada que possa fazê-la trabalhar. Ou você usa sua mente, com pensamentos, leitura, imagens ou sons, reais, todos os dias, cansando-a até um ponto em que não consegue fazê-la assimilar nada mais, e assim a treina para, cada vez mais, trabalhar com você, ou deixa que sua mente se acostume a trabalhar por conta própria, sonhando, criando, imaginando, restringindo, e muito, aquilo que chega a ela à partir dos olhos, dos ouvidos, da pele.

- Uma pessoa que não cria imagens, sons, que não imagina e não sonha de olhos acordados não tem criatividade, não desenvolve muito aptidões artísticas, gostos e afins.

- Treine sua mente para o que é real. Ela nunca vai estar totalmente treinada apenas para lidar somente com o que é externo. É aí que entra a criatividade. Até porque, pessoas criativas viram, ouviram, sentiram muitas coisas antes de criarem uma só arte à partir de seus dons, virtudes ou treinamentos.

- Prestar atenção no que ouço, então, vai me permitir controlar aqueles ruídos produzidos pela minha mente?

- É bem provável.

- Você é um psiquiatra.

- Não.

- Não?

- Não. Inventei tudo agora.

E voltou a balançar a bengala, de um lado para outro, como se nada tivesse dito a mim.

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