terça-feira, 2 de agosto de 2011

Histórias de uma vida não vivida (37)


*Entendi que sob a luz está tudo o que se pode descrever. De olhos fechados não há descrição pois não há luz, logo não se pode ver. Apenas os outros sentidos valem quando não há luz. Descrevendo apenas o que se sente, quando possível, dá-se a mais simples forma até mesmo às mais complexas sensações. Quente ou frio, forte ou fraco, grande ou pequeno, redondo, quadrado ou triangular. Amor, raiva ou decepção. Então, olhos fechados para aquilo que não quero lembrar e tudo talvez seja mais simples.

- Olha ali embaixo!

- Onde?

- Ali, ali, lá...

Ela parou.

- Não, continua caminhando...

- Por quê? Não estou vendo nada.

- Continua caminhando que vai ter sentido.

Ela voltou a caminhar.

- O que você quer que eu veja?

- Olha para o chão, olha para os detalhes desse piso.

- Então eu tenho que parar e prestar atenção!

- Já disse que não, continua caminhando, já disse que parada você não vai entender!

- Está bem.

- Agora você está vendo?

- Só vejo os detalhes do piso da calçada.

- Reparou na luz?

- A do poste?

- A que vai mudando de lugar, refletindo de um jeito diferente no piso a cada passo que você dá...

- Ah, era isso... agora entendi.

- E aí?

- Sabe, é legal. Cada piso diferente, cada tipo de piso nas calçadas dão um reflexo diferente e os detalhes são...

- ...diferentes!

- É! Isso é legal mesmo. Como você consegue?

- Como eu consigo o que?

- Descobrir coisas legais em coisas simples.

- Talvez seja inspiração por você estar aqui comigo.

Ela parou mais uma vez.

- Você é estranho.

- Por que?

- Geralmente pessoas inspiradas criam alguma coisa e não ficam reparando tanto em detalhes.

- Você sabe que não sou detalhista.

- Sim, por isso não faz sentido logo você ter reparado em uma coisa tão simples, e tão legal quanto os diferentes reflexos das luzes da cidade nos pisos das calçadas.

- Obrigado.

- Ah, eu não quis dizer que...

- Você quer inspiração com palavras? Achei que nada do que eu dissesse lhe importava mas...

Ele fez um gesto com a cabeça para continuarem andando. Uma finíssima garoa começava a cair.

- Pega.

Ele tirou o moletom e colocou sobre as costas dela.

- Não quero que você fique gripada.

Ela sorriu. Eles então voltaram a caminhar.

- Você ia me dizer alguma coisa.

- Ah sim, as palavras.

- Não precisa dizer nada, eu não quis mesmo...

- Agora precisa.

Ela não desviava o olhar dele, aquilo talvez viesse a ser engraçado.

- Caminhamos sobre o piso e as luzes se transforam. Cada detalhe gera uma nova imagem, cada pequeno fim gera uma expectativa sobre um novo começo. Quem sabe a vida seja assim, como as luzes da cidade que batem nos pisos das calçadas e geram uma imagem diferente a cada passo. Caminhamos escrevendo uma história nova, vendo imagens novas e a luz, ah, a luz é nova a cada dez passos. Quem diria que algum dia seria assim, que estaríamos aqui, sozinhos, caminhando sobre luzes sem saber ao certo onde iremos chegar? São tantas imagens que fica difícil escolher uma porque, a cada passo, surge uma nova imagem e essa parece ainda melhor do que a anterior. E assim os passos se sucedem e as escolhas mudam a cada passo. E as que ficaram para trás? Quem se importa com elas agora? Não será a mesma coisa se voltarmos para revê-las. Como as lembranças que ficaram e foram boas. Não dá para querer revivê-las, elas tiveram seu tempo certo. Assim acontece com as más lembranças. Não precisamos dela, não precisamos de nada delas porque, se quisermos, cada passo dado gerará uma imagem pior, no caso, uma lembrança pior. Depende do ponto de vista. Agora estou aqui com você e, pelo resto dos meus passos, quero que você esteja comigo para ver todas as imagens que as luzes colocam à nossa frente. Que esteja comigo para me ajudar a caminhar e para fazer parte não apenas das minhas lembranças como também das novas histórias que serão escritas na minha vida.

Ela pareceu perplexa. Ele nada mais disse.

- Nunca imaginei que você conseguisse dizer tudo isso.

- Inspiração.

- Eu?

- É.

O silêncio da noite veio.

- O insensato da espera me cansa, queria que tudo pudesse ser sem qualquer condicional.

Ela o olhou sem saber se havia entendido.

- Sabe, daqui a algum tempo tudo talvez pareça tão simples, os condicionais do mundo e das outras pessoas talvez sejam bons.

- Para quem?

- Talvez para você, talvez para nós dois. Eu não sei.

- Então?

- O problema não é saber o que vai acontecer.

- Qual é o problema?

- Pensar que esses condicionais, em algum tempo, impeçam você de estar comigo.

Ela não sabia o que responder.

- Eu...

- Não precisa dizer nada. Estou feliz por estar aqui comigo. O futuro preocupa mas... sabe, o futuro sempre preocupou, então...

- Então?

- É isso, nada.

- Pelo menos sempre teremos as lembranças né.

Ele sorriu.

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